'Mata-leão' x Taser: policiais franceses acusam governo de 'traição' em proposta para combater violência e racismo
A decisão do ministro francês do Interior, Christophe Castaner, de proibir os policiais franceses de utilizarem a técnica do estrangulamento — popularmente chamada de mata-leão — em operações de detenção de suspeitos criou um enorme atrito com oficiais de alta patente e sindicatos de polícia. A proposta de substituir esse método de imobilização pelo Taser, uma arma de eletrochoque considerada não letal, gera ainda mais discórdia entre a categoria e o governo.
A promessa de "tolerância zero" de Castaner em relação a casos de racismo e abusos por parte de policiais franceses, na sequência da morte de George Floyd nos Estados Unidos e de denúncias similares na França, deixou policiais e oficiais furiosos. Eles se sentiram "traídos" por Castaner. O ministro é acusado de macular a credibilidade da categoria e de colocar a vida dos policiais em risco em operações contra criminosos.
Fato raro em uma corporação habituada ao respeito à hierarquia e à discrição, o oficial representante do Estado em Paris, Didier Lallement, e o diretor da Polícia Nacional francesa, Frédéric Veaux, enviaram cartas de apoio aos policiais. "Continuem acreditando na República, não percam a confiança em vocês nem em seus chefes. Aqueles que pretendem que exista uma violência estrutural na polícia mentem", escreveu Lallement.
Oficial linha-dura, recrutado às pressas pelo governo no ano passado para conter os protestos dos coletes amarelos após meses de impasse, Lallement é acusado de ter adotado uma doutrina de repressão violenta contra os manifestantes. Dezenas de coletes amarelos ou simples simpatizantes foram mutilados pelo uso excessivo de balas de borracha e granadas de gás lacrimogênio, a ponto de a ONU defender uma investigação independente sobre os métodos violentos da polícia francesa contra o movimento social.
Em sua mensagem de solidariedade aos policiais, o diretor da Polícia Nacional disse: "Diante das confusões e dos amálgamas alimentados por uma minoria, compartilho com vocês um sentimento de profunda injustiça", escreveu Frédéric Veaux. "Nossa posição não é de negação [de possíveis casos de racismo], (...) mas a única coisa que conta é permitir a vocês que cumpram sua missão nas melhores condições", acrescentou Frédéric Veaux.
A proposta do ministro do Interior de substituir o estrangulamento pelo Taser é criticada por policiais. Eles lembram que um contingente ainda muito pequeno de agentes recebeu treinamento para usar o equipamento de eletrochoque. Até que todos estejam formados, eles temem ficar em situação de fragilidade diante de um suspeito perigoso e que oferece resistência no momento da detenção. Por outro lado, um "mata-leão" mal aplicado, assim como um decúbito ventral desproporcional, podem provocar mortes por asfixia.
Policiais criticam decisão do ministro
Em entrevista à rádio France Info, a policial Aurélie, 30 anos, da brigada de socorro e segurança de Paris, disse que a técnica do estrangulamento ensinada durante décadas nas academias de polícia na França "é muito útil para dominar rapidamente um suspeito perigoso, levá-lo ao chão e algemá-lo em poucos segundos". "Recentemente, tive de recorrer a esse método para liberar uma colega que estava sendo estrangulada por um suspeito", relata. Segundo ela, o "mata-leão" compensa diferenças de gabarito entre homens e mulheres. "Às vezes, enfrentamos uma pessoa com um físico muito maior que o nosso, com peso muito maior. Se não pudermos agir da maneira como aprendemos na escola, será preciso oferecer uma alternativa", argumentou.
David, policial de 40 anos, diz que será obrigado a obedecer à decisão do ministro. Porém, diante de situações que poderão colocar em risco a vida do agente, "talvez o número de detenções irá diminuir e haverá mais bandidos em fuga". "É preciso deixar claro uma coisa: quando você está diante de alguém perigoso, que é maior que você e tem um físico mais atlético, a única forma de dominá-lo é com essa técnica do estrangulamento pelo pescoço", explica David. "Se o policial não tiver um Taser, como ele vai fazer?", questiona.
David ainda chama a atenção para o fato de que atualmente apenas 15 mil policiais e militares franceses envolvidos em operações de patrulhamento dispõem do Taser para trabalhar. "Isso representa menos de 7% do contingente policial", assinala. "Uma agente como Aurélie, por exemplo, terá de ser treinada a utilizar o equipamento de imobilização por eletrochoque", ressalta. "E até lá, faço o que diante de um indivíduo perigoso?", pergunta Aurélie.
Desde que a polícia francesa adotou o Taser, em 2006, o número de agentes equipados com essa arma dita não letal vem aumentando continuamente. O equipamento já foi utilizado em 2.350 ocasiões, o que representa uma média de seis vezes ao dia. Essa arma, no entanto, não é isenta de risco. No ano passado, um homem morreu ao sofrer uma parada cardíaca em Tarrascon, no sul da França, depois de dois policiais atirarem contra ele, simultaneamente, com seus respectivos Tasers.
É consensual entre advogados e especialistas que existem problemas de racismo e de abuso de poder na polícia francesa. Mas o fenômeno não pode ser generalizado para toda a corporação, advertem. Alguns observadores notaram que o ministro do Interior tomou uma decisão precipitada ao proibir o "mata-leão". O problema mais urgente é combater a impunidade de policiais implicados em casos de morte por abuso de autoridade ou racismo. O órgão chamado IGPN, "a polícia da polícia", que deveria autuar os infratores, é acusado de esconder a poeira embaixo do tapete.
Diante da crise, o ministro do Interior está recebdendo até amanhã todos os chefes dos sindicatos de polícia para tentar acalmar os ânimos.
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