Veja o que aconteceu na Assembleia que autorizou a reforma da Previdência na França
A França é palco de uma segunda-feira (20) tensa em que o governo da primeira-ministra Élisabeth Borne foi colocado à prova, após a imposição de uma controversa reforma da Previdência por decreto na última semana. O país inteiro acompanhou a votação de duas moções de censura que tinham o poder de dissolver a Assembleia, mas ambas foram rejeitadas.
A primeira moção de censura reuniu 278 votos, faltando apenas 9 para que fosse adotada. A segunda obteve apenas 94 votos.
O resultado já era esperado e resulta na aprovação de uma controversa reforma da Previdência, que leva milhões de franceses às ruas em manifestações desde o início deste ano. Para a adoção das moções - mecanismo que tem o poder de derrubar o governo - seriam necessários 287 votos entre os 573 deputados que compõem atualmente a Assembleia francesa. Nenhuma das duas conseguiu o apoio necessário.
As duas moções foram registradas na semana passada, a primeira pelo grupo de deputados independentes Liot e a outra pelo partido de extrema-direita Reunião Nacional. As iniciativas foram uma reação à utilização do artigo 49.3 da Constituição pela primeira-ministra para a adoção da reforma da Previdência sem o voto da Assembleia.
No entanto, a rejeição das moções de censura não significa que a reforma está automaticamente promulgada. A oposição deverá acionar o Conselho Constitucional - a mais alta jurisdição administrativa do país - o que pode dificultar a adoção do projeto de lei que pretende modificar o sistema de aposentadorias da França. A esquerda também deve propor um referendo sobre a questão.
Reações e protestos
Após o anúncio dos resultados das votações, vários membros do governo e deputados reagiram. No Twitter, Élisabeth Borne afirmou que "o caminho democrático" da reforma foi atingido. "É com humildade e gravidade que engajei minha responsabilidade e a de meu governo", disse.
Já Jean-Luc Mélenchon, líder do partido da esquerda radical A França Insubmissa, fez um apelo em prol da "censura popular" que, segundo ele, "deve se expressar massivamente" para "obter a revogação do texto".
O deputado Aurélien Pradié, do partido Os Republicanos, de direita, fez um apelo para que o presidente francês, Emmanuel Macron, cancele "essa lei envenenada", afirmando que o governo de Borne tem "um problema de legitimidade". "Esse texto se tornou um problema para a nossa vida democrática", declarou, em entrevista ao canal BFMTV.
Logo após o anúncio dos resultados, centenas de manifestantes começaram a se dirigir à Praça Vauban, no 7º distrito de Paris, nas proximidades da Assembleia Nacional. Aos gritos de "Macron, demissão", eles exigem a revogação da reforma e a demissão do governo.
"Negação da democracia"
Antes do início da votação, o presidente de cada grupo parlamentar discursou diante da Assembleia. Primeiro a falar, o deputado Charles de Courson, representante do grupo Liot, classificou a reforma de "injusta" e "negação da democracia". "Senhora primeira-ministra, você fracassou em reunir, você fracassou em convencer, você cedeu à facilidade e evitou a sanção do voto. Você provavelmente perderia essa votação, mas essa é a regra da democracia", disse.
De Courson se referiu ao recurso usado pela premiê, o artigo 49.3 da Constituição - que permite que um texto seja aprovado sem votação - impedindo que a reforma fosse votada pelos deputados na última semana. Segundo a imprensa francesa, o presidente Emmanuel Macron teria ordenado a imposição por decreto do projeto de lei ao perceber que faltavam dois votos para a aprovação do texto.
Em seguida, a presidente do grupo do partido Reunião Nacional na Assembleia, Laure Lavalette, não poupou Borne de críticas. "Recusando-se a retirar esta reforma e recusando-se a passar por um referendo, você mancha tanto a sua honra como nossas missões parlamentares", declarou. "Rumo à dissolução", reiterou a parlamentar, afirmando que, no caso de novas eleições, a extrema-direita voltará "ainda mais numerosa" à Assembleia.
Já Aurore Bergé, presidente da coalizão governista Renascimento, defendeu a reforma da Previdência dizendo que ela deve ser adotada "pelo futuro da França". A deputada concentrou seu discurso nas críticas às alianças entre os diferentes partidos dentro da Assembleia para tentar derrubar o governo. "Tenho vergonha do tapete vermelho que vocês estenderam à extrema-direita", declarou.
Mathilde Panot, deputada do partido da esquerda radical A França Insubmissa, comparou Macron a Calígula e classificou de "arrogante" a cúpula do governo por se negar a ouvir a revolta das ruas. "Nunca um presidente quis governar com tanto desprezo". Dirigindo-se ao presidente francês, a deputada afirmou: "Você não tem nenhuma legitimidade para realizar essa reforma e você sabe disso".
Muito aguardado, o discurso de Olivier Marleix, do partido Os Republicanos (direita) surpreendeu ao apontar falhas do governo. "O presidente da República não aprendeu nada com a crise dos coletes amarelos? Sem o respeito dos franceses, dos corpos intermediários, dos parceiros sociais, nada é possível", disse. No entanto, Marleix ratificou o apoio dos republicanos à reforma da Previdência "para salvar o sistema de aposentadorias".
No final da sessão, a primeira-ministra tomou a palavra e, em um tom irritado, repreendeu os deputados que iniciaram e apoiaram as moções de censura. Borne também defendeu a reforma, afirmando que o governo "nunca foi tão longe" no compromisso e no diálogo social, respeitando "todas as responsabilidades".
Revolta contra a reforma da Previdência
A reforma da Previdência era uma das promessas de campanha do presidente Emmanuel Macron, que foi reeleito graças a uma mobilização dos eleitores no segundo turno das eleições contra a candidata da extrema-direita Marine Le Pen. Há meses os partidos da oposição contestam a necessidade deste projeto de lei, enquanto o governo alega que ele é essencial para reequilibrar o sistema que diz ser deficitário.
O texto foi apresentado no início janeiro pelo governo, prevendo passar a idade da aposentadoria dos 62 para os 64 anos. Entre as várias mudanças propostas, o projeto acaba com privilégios de alguns setores sendo acusado de prejudicar trabalhadores com os salários mais baixos e as mulheres. O executivo também é acusado de acelerar os debates para aprovar a reforma rapidamente: no total, deputados e senadores tiveram cerca de 50 dias para discutir o projeto.
Após ser votado pelo Senado, o texto voltou para a Assembleia de Deputados na última quinta-feira. No entanto, antes do início do voto, a primeira-ministra Elisabeth Borne anunciou aos parlamentares que a reforma passaria à força, por meio do artigo 49.3. A decisão inflamou a oposição e incitou milhares de pessoas a saírem espontaneamente às ruas, para denunciar uma atitude autoritária do governo.
Desde 19 de janeiro, milhões de franceses atenderam às convocações das centrais sindicais para oito jornadas de greve nacionais e protestos. A próxima delas está prevista para esta quinta-feira (23), mas desde o anúncio da reforma por decreto, manifestações vêm sendo realizadas de forma espontânea em todo o país.
Pesquisas realizadas por diversos institutos de pesquisa nas últimas semanas mostram que, em média, 75% dos franceses são contra a reforma da Previdência.
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