A morte da esquerda latino-americana deixa um recado: tenha cuidado com a corrupção
Jorge G. Castañeda*
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Jorge Silva /Reuters
Presidentes Dilma Rousseff, Nicolás Maduro, a ex-presidente Cristina Kirchner, o presidente do Paraguai, Horacio Cartes e Evo Morales em reunião do Mercosul de 2014
A esquerda latino-americana passou por alguns meses miseráveis. Na Argentina, Venezuela e Bolívia, ele foi derrotada de forma decisiva em três tipos diferentes de eleições. O presidente do Equador, Rafael Correa, provavelmente vendo as tendências ao seu redor, decidiu abandonar suas tentativas de permanecer no poder. No Chile, escândalos de corrupção envolvem líderes antes respeitados. Mais recentemente, a teia de propinas pegou uma das figuras mais reverenciadas entre os esquerdistas latino-americanos do século 21, o ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva.
A "maré cor-de-rosa" está se desfazendo. Por que isso está acontecendo agora? E o que a esquerda pode aprender à medida que perde seu poder?
Desde a eleição de Hugo Chávez na Venezuela em 1998, partidos, movimentos e líderes de esquerda e centro-esquerda passaram a governar em grande parte da América Latina. Os líderes de esquerda foram reeleitos ou seus substitutos escolhidos a dedo venceram facilmente. Com algumas poucas exceções importantes, essas administrações governaram bem, melhoraram a vida de seus eleitores e adotaram políticas macroeconômicas sensíveis.
Também tiveram sorte. De aproximadamente 2003 a 2012, a América Latina desfrutou de um dos maiores booms de commodities em sua história moderna. Exportando de tudo, de petróleo a soja, os governos latino-americanos receberam os ganhos inesperados, que gastaram em programas sociais, com frequência bem planejados e de custo viável. O problema é que ninguém poupou para os inevitáveis tempos ruins. Quando os preços começaram a despencar, tanto os novos fundos soberanos quanto as táticas tradicionais, como estímulos fiscais, provaram ser inadequados. Um país atrás do outro começou a ver a queda das taxas de crescimento, encolhimento dos gastos sociais e os cidadãos ficarem furiosos.
As recentes derrotas se devem em grande parte a esta realidade econômica. Mas não exclusivamente. Líderes esquerdistas latino-americanos demais sucumbiram à corrupção endêmica da região e subestimaram a crescente intolerância a ela. Quando alguns governos, como o do Chile e da Bolívia, começaram a dar atenção à questão, já era tarde demais. Eles se viram tão profundamente emaranhados na tradição da América Latina de práticas corruptas quanto os antecessores conservadores, civis ou militares, eleitos ou impostos.
O contínuo escândalo no Brasil se espalhou dos altos executivos da companhia estatal de petróleo, das autoridades do governo federal e do Congresso até o ex-presidente e sua família. A presidente Dilma Rousseff pode ser a próxima a cair, graças às confissões de senadores de seu próprio partido e de João Santana, o consultor político que dirigiu a campanha dela e de Lula. A probabilidade é cada vez maior de que Lula será preso e Dilma Rousseff sofrerá impeachment. Mas as implicações vão além das fronteiras do Brasil: Santana também atuou nas eleições vencidas por verdadeiros ou supostos candidatos de esquerda na Venezuela e no Peru.
Também ocorreram outros erros. Apesar de muitos governos esquerdistas, no Chile, Brasil, Uruguai e, até certo ponto, na Bolívia, terem resistido às tentações autoritárias, muitos não o fizeram. Alguns amordaçaram a imprensa, passaram a controlar o Judiciário, perseguiram líderes de oposição e manipularam eleições. Outros fracassaram em lidar com a crescente criminalidade e violência.
Diante do mau estado da economia e da ubiquidade dos escândalos de corrupção, a esquerda continuará perdendo eleições: no Brasil, se novas eleições forem realizadas em breve; no Equador, em 2017; e por meio de um referendo para afastar o presidente na Venezuela, talvez ainda neste ano. Algum dia, entretanto, os partidos esquerdistas voltarão a vencer. Quando essa hora chegar, a esquerda de amanhã precisa aprender duas lições do início deste século.
Primeiro, poupar dinheiro para os tempos ruins não é apenas um preceito bíblico. Se a esquerda estiver no poder quando ocorrer o próximo boom de commodities, os governos precisam fazer reservas para o futuro. A Venezuela e o Equador devem tirar proveito de preços mais altos do petróleo (se vierem a ocorrer) para criação de fundos de contingência administrados de forma autônoma. O Chile e o Peru deveriam fazer o mesmo com o cobre.
As novas classes médias da região aplaudiram os projetos de construção e os programas de saúde e educação que foram pagos pelo dinheiro do boom de commodities. Elas deploraram os cortes nesses esforços, independente de quão justificáveis ou inevitáveis possam ser. Mas os governos de esquerda deveriam encontrar formas de manter esses programas quando as receitas encolhem. A forma de fazê-lo não é rezando por economias mais diversificadas, já que a América Latina nunca as teve e não terá as por muito tempo, mas sim administrando as economias baseadas em recursos de modo mas sábio e presciente.
Mas o dinheiro para os tempos ruins precisa ser tratado com transparência. O que nos leva à segunda lição: as causas da corrupção por toda a região (a falta de prestação de contas, uma cultura de ilegalidade, instituições e sociedade civil fracas) podem afetar tanto os políticos da esquerda quanto da direita. Não havia motivo para esperar que se os velhos políticos venezuelanos aceitavam propinas e troca de favores, a nova elite não o faria. O Partido dos Trabalhadores de Lula veio de origens humildes no movimento trabalhista, mas o fato de nunca ter feito nenhum acordo indevido enquanto estava na oposição revelou não significar nada. Os partidos latino-americanos devem prestar atenção.
No final, o avanço da esquerda do início dos anos 2000 pode ter sido perdido devido às expectativas elevadas, mais do que qualquer outra coisa. Quando os preços do petróleo caíram e o governo do Equador não mais pôde pagar por novas estradas e mais escolas, a população do país ficou furiosa, porque o crescimento com o qual se acostumou desapareceu. Quando Lula foi acusado de corrupção, isso mostrou que ele fracassou em promover a mudança que tinha prometido. Os esquerdistas chegaram ao poder com esperanças elevadas e grandes sonhos, apenas para se verem expostos aos seus inimigos. A melhor coisa que aconteceu no América Latina nos últimos tempos tem sido o clamor por integridade no governo. Da próxima vez, a esquerda deveria empunhar essa bandeira, em vez de negligenciá-la.
*Jorge G. Castañeda, o ministro das Relações Exteriores do México de 2000 a 2003, é professor da Universidade de Nova York
Tradutor: George El Khouri Andolfato
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