O que Trump e Marx têm em comum?
Jochen Bittner*
Em Hamburgo (Alemanha)
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Arte UOL
Ambos usaram a ira para motivar seus seguidores --mas de maneiras muito diferentes
Temos uma palavra em alemão --"Wutbürger"-- que quer dizer "cidadão irado", mas, como muitas palavras compostas em alemão, seu significado não pode ser totalmente captado em uma tradução concisa em inglês. No entanto, nada em qualquer dessas línguas define tão bem o atual momento político.
É uma expressão relativamente nova, com uma conotação depreciativa. Um Wutbürger se enfurece com uma nova estação de trem e reclama das turbinas eólicas. Os Wutbürgers saíram em protesto depois que o governo de Berlim decidiu socorrer a Grécia e aceitar aproximadamente 1 milhão de refugiados e migrantes na Alemanha.
Os Wutbürgers estão nos dois extremos do espectro político; afiliam-se à Alternativa para a Alemanha (AfD) e ao Partido de Esquerda socialista (Linke).
A esquerda tem um lugar na política alemã há muito tempo, e a Linke tem raízes profundas no partido governante da antiga Alemanha Oriental. E tivemos uma direita marginal desde o início do período do pós-guerra.
Mas a ira populista da AfD é algo novo: anti-establishment, anti-União Europeia e antiglobalização, o partido não existia quatro anos atrás. Hoje, 18% dos alemães considerariam votar nele.
O mesmo acontece em outras partes da Europa; muitos Wutbürgers britânicos votaram no Brexit [a saída do Reino Unido da UE]. Wutbürgers franceses votarão na Frente Nacional de Marine Le Pen. Talvez o mais poderoso Wutbürger de todos seja Donald J. Trump.
O que levanta a pergunta: como a raiva foi sequestrada?
Em sua forma pura, a ira é uma maravilhosa força de mudança. Imagine um mundo sem raiva. Na Alemanha, sem a ira do movimento trabalhista, ainda teríamos um sistema eleitoral baseado em classes que privilegiava os ricos, e os trabalhadores ainda teriam de labutar 16 horas por dia sem direito à aposentadoria. O Reino Unido e a França ainda seriam governados por monarcas absolutistas. A Cortina de Ferro ainda dividiria a Europa, os EUA ainda seriam uma colônia britânica e seus escravos só poderiam sonhar em votar neste 8 de novembro.
Karl Marx foi um Wutbürger. Assim como Montesquieu, William Wilberforce, o reverendo Martin Luther King Jr. e as dezenas de milhares de manifestantes alemães-orientais que derrubaram o Muro de Berlim em 1989.
Agora, compare esses espíritos com os partidos atuais que afirmam defender mudanças necessárias. Trump versus King. Tristemente, os líderes dos movimentos atuais de Wutbürgers não entenderam a diferença entre ira conduzida por um sentido de justiça e a raiva conduzida pelo ódio.
A ira funciona como gasolina. Se você a usar de modo inteligente e controlado, pode movimentar o mundo. Isso se chama progresso. Ou se você a derramar e acender um fósforo criará explosões espetaculares. Isso se chama incêndio criminoso.
Infelizmente, existe hoje uma falta de maturidade e prudência não apenas entre a nova classe populista, mas em partes do establishment político. A classe governante precisa compreender que só porque as pessoas estão amargas e paranoicas não significa que não tenham uma causa. Um número crescente de eleitores entra em parafuso por acreditar que os políticos --e os jornalistas-- não veem o que eles veem.
Certamente, as injustiças que eles veem são, em uma perspectiva histórica, menos evidentes e simples que nos dias de Marx ou King. As injustiças hoje são menores, mas mais complexas. E é isso o que as torna ainda mais aterrorizantes.
Se John Steinbeck pudesse viajar pelo oeste hoje como viajou pelos EUA há três gerações, saindo das rodovias para visitar cidades esquecidas, documentando a luta das pessoas como fez em "As Vinhas da Ira", encontraria muitas coisas parecidas sobre as quais escrever. A globalização e seus senhores capitalizaram as enormes diferenças de salários entre o oeste e o leste, com enormes lucros para eles e enormes custos para os outros.
A classe alta ganhou muito mais com a internacionalização do comércio e das finanças do que a classe trabalhadora, muitas vezes de maneiras obscenas. Os banqueiros recebem bônus apesar de tomarem decisões idiotas que provocam prejuízos incríveis. Empresas gigantescas como Facebook ou Apple pagam impostos mínimos, enquanto os trabalhadores de colarinho azul têm de trabalhar mais --mesmo pegando um segundo ou terceiro emprego-- para manter seu padrão de vida. E isso é tão verdadeiro na Alemanha, na França ou na Áustria quanto em Ohio ou na Flórida.
Na Alemanha, cerca de 60% dos apoiadores da AfD dizem que a globalização tem consequências "principalmente negativas". Vivemos em um mundo, comentou ultimamente o historiador liberal britânico Timothy Garton Ash, "que faria Marx esfregar as mãos de Schadenfreude" [prazer com a desgraça alheia].
Os problemas dos eleitores brancos, muitas vezes menos instruídos, dos dois lados do Atlântico geralmente são descartados como caipirice xenófoba e simplista. Mas fazer isso tem um preço. A tradicional força de mudança social da Europa, seus social-democratas, parecem não entender. Quando Hillary Clinton chama a metade dos eleitores de Trump de "um cesto de deploráveis", ela parece tão arrogante quanto Maria Antonieta ao dizer aos súditos franceses que não tinham pão: que comam bolo.
Na Alemanha, um vice-líder social-democrata, Ralf Stegner, demonstra uma arrogância parecida quando chama os seguidores da AfD de "racistas" e "desprezíveis". Reportagens na mídia muitas vezes transmitem o mesmo grau de desprezo.
Na Alemanha, uma pesquisa recente mostrou que apenas 14% dos cidadãos confiam nos políticos. É um número alarmante, em um país onde a fé em um governo democrático e progressista tem sido uma pedra angular da paz no pós-guerra. Mas isso pressupõe que a raiva legítima será reconhecida como tal. Se essa fé for abalada, a democracia perderá sua promessa básica.
Em meio a suas acusações mútuas, nem os partidos populistas nem os estabelecidos admitem que ambos estão desperdiçando a ira das pessoas, seja ao transformá-la em ódio contraproducente, seja denunciando-a e rejeitando-a. Hillary Clinton tem a oportunidade de mudar, liderando um meio político que examina e processa a ira, em vez de meramente produzi-la e rejeitá-la. Se o fizer, esperemos que a Europa mais uma vez veja na América um modelo de democracia.
*Jochen Bittner é editor de política do jornal semanal "Die Zeit" e colabora com artigos de opinião
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Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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