Cúpula das Américas: Cartagena além do escândalo do serviço secreto

Noam Chomsky

Noam Chomsky

  • Luis Acosta/AFP

    Presidentes e primeiros-ministros de países participantes da Cúpula das Américas em Cartagena, em abril

    Presidentes e primeiros-ministros de países participantes da Cúpula das Américas em Cartagena, em abril

Apesar de ofuscada pelo escândalo do Serviço Secreto, a Cúpula das Américas do mês passado em Cartagena, na Colômbia, foi um evento de considerável importância. Há três grandes motivos: Cuba, a guerra contra as drogas e o isolamento dos Estados Unidos.
 
Uma manchete no “Jamaica Observer” dizia: “Cúpula mostra o quanto diminuiu a influência ianque”. O artigo dizia que “os grandes itens na agenda foram o lucrativo e destrutivo comércio das drogas e a pergunta sobre como os países de toda a região poderiam se encontrar e ao mesmo tempo excluir um: Cuba”.
 
Os encontros terminaram sem consenso, por causa da oposição americana nestes itens: uma política de descriminalização das drogas e a exclusão de Cuba. A contínua obstrução americana pode levar à substituição da Organização dos Estados Americanos pela recém-formada Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, da qual os Estados Unidos e o Canadá estão excluídos.
 
Cuba concordou em não participar da Cúpula porque, caso contrário, Washington a teria boicotado. Mas o encontro deixou claro que a intransigência americana não seria mais tolerada. Os Estados Unidos e o Canadá foram os únicos proibindo a participação cubana, com base nas violações por Cuba dos princípios democráticos e direitos humanos.
 
Os latino-americanos podem avaliar essas acusações a partir de ampla experiência. Eles estão familiarizados com o retrospecto americano em direitos humanos. Cuba, especificamente, sofreu com ataques terroristas americanos e estrangulamento econômico como punição por sua independência --seu “desafio bem-sucedido” às políticas americanas que remontam a Doutrina Monroe.
 
Não é preciso uma bolsa de estudos americana para os latino-americanos reconhecerem que Washington apoia a democracia se, e apenas se, ela estiver em conformidade com objetivos estratégicos e econômicos, e mesmo quando está, defende “formas limitadas de mudança democrática, de cima para baixo, que não perturbem as estruturas de poder tradicionais com as quais os Estados Unidos há muito se aliam em sociedades não democráticas”, como aponta o acadêmico neo-reaganista Thomas Carothers.
 
Na Cúpula em Cartagena, a guerra contra as drogas se tornou uma questão chave por iniciativa do presidente recém-eleito da Guatemala, o general Pérez Molina, que ninguém confundiria com um liberal de coração mole. Ele foi acompanhado pelo anfitrião da Cúpula, o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, e por outros.
 
A preocupação não é nova. Há três anos, a Comissão Latino-Americana Sobre Drogas e Democracia publicou um relatório sobre a guerra contra as drogas, de autoria dos ex-presidentes do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, do México, Ernesto Zedillo, e da Colômbia, César Gaviria, pedindo pela descriminalização da maconha e para tratar o uso de drogas como um problema de saúde pública.
 
Muita pesquisa, incluindo um muito citado estudo da Corporação Rand de 1994, mostra que prevenção e tratamento são mais custo eficazes do que as medidas coercivas que recebem grande parte dos fundos. Essas medidas não punitivas também são, é claro, bem mais humanas.
 
A experiência confirma essas conclusões. De longe a substância mais letal é o tabaco, que também mata não usuários em uma taxa elevada (fumo passivo). O uso caiu acentuadamente entre os setores mais educados, não pela criminalização, mas em consequência de mudanças de estilo de vida.
 
Um país, Portugal, descriminalizou todas as drogas em 2001 –o que significa que elas permanecem tecnicamente ilegais, mas são consideradas infrações administrativas, fora do domínio criminal. Um estudo do Instituto Cato, de autoria de Glenn Greenwald, apontou que os resultados foram “um enorme sucesso. Dentro desse sucesso se encontram lições evidentes que deveriam guiar os debates sobre políticas para drogas em todo o mundo”.
 
Em um contraste dramático, os procedimentos coercivos dos 40 anos de guerra americana contra as drogas não tiveram virtualmente nenhum efeito sobre o uso ou preço das drogas nos Estados Unidos, mas provocaram caos por todo o continente. O problema é principalmente nos Estados Unidos: tanto a demanda (pelas drogas) quanto a oferta (de armas). Os latino-americanos são as vítimas imediatas, sofrendo níveis apavorantes de violência e corrupção, com o vício de espalhando pelas rotas de trânsito.
 
Quando as políticas são seguidas por muitos anos com dedicação perseverante, apesar de conhecidas por fracassarem nos termos dos objetivos declarados, e alternativas que provavelmente seriam muito mais eficazes são sistematicamente ignoradas, dúvidas surgem naturalmente em relação aos motivos. Um procedimento racional é explorar as consequências previsíveis. Elas nunca foram obscuras.
 
Na Colômbia, a guerra contra as drogas foi uma fachada para a contrainsurreição. A fumigação –uma forma de guerra química– destruiu plantações e biodiversidade rica, contribuindo para levar milhões de camponeses para as favelas urbanas, abrindo vastos territórios para mineração, agronegócio, fazendas e outros benefícios para os poderosos.
 
Outros beneficiados com a guerra contra as droga são os bancos, lavando quantias imensas de dinheiro. No México, os grandes cartéis das drogas estão envolvidos em 80% dos setores produtivos da economia, segundo pesquisadores acadêmicos. Desdobramentos semelhantes estão ocorrendo em outros lugares.
 
Nos Estados Unidos, as principais vítimas são os homens afro-americanos, além de um número crescente de mulheres a latinos –resumindo, aqueles considerados supérfluos pelas mudanças econômicas instituídas nos anos 70, com a financeirização da economia e terceirização da produção no exterior.
 
Graças em grande parte à guerra contras as drogas altamente seletiva, minorias são enviadas para a prisão –o principal fator no aumento radical do encarceramento desde os anos 80, que se tornou um escândalo internacional. O processo lembra a “limpeza social” nos Estados clientes dos Estados Unidos na América Latina, que se livra dos “indesejáveis”.
 
O isolamento dos Estados Unidos em Cartagena leva adiante outros desdobramentos importantes da última década, à medida que a América Latina finalmente começou a se livrar do controle das grandes potências, e até mesmo a tratar de seus problemas internos chocantes.
 
A América Latina há muito tem tradição de jurisprudência liberal e rebelião contra a autoridade imposta. O New Deal se inspirou nessa tradição. Os latino-americanos poderão novamente vir a inspirar o progresso nos direitos humanos nos Estados Unidos.

Tradutor: George El Khouri Andolfato

Noam Chomsky

Noam Chomsky é um dos mais importantes linguistas do século 20 e escreve sobre questões internacionais.

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