A doutrina Obama

Noam Chomsky

Noam Chomsky

  • 1º.out.2013 - Larry Downing/Reuters

    O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama

    O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama

O recente arrufo entre Obama e Putin em torno do excepcionalismo americano reacendeu um debate em andamento sobre a doutrina Obama: estaria o presidente virando na direção do isolacionismo? Ou será que ele carrega orgulhosamente a bandeira do excepcionalismo?

O debate é mais estreito do que parece. Há consideráveis pontos em comum entre as duas posições, como expressado claramente por Hans Morgenthau, o fundador da agora dominante e não sentimentalista escola "realista" de relações internacionais.

Ao longo de seu trabalho, Morgenthau descreve os Estados Unidos como sendo únicos entre todas as potências do passado e do presente, no fato de terem um "propósito transcendente" que "devem defender e promover" por todo o mundo: "o estabelecimento da igualdade na liberdade".

Ambos os conceitos concorrentes "excepcionalismo" e "isolacionismo" aceitam essa doutrina e suas várias elaborações, mas diferem em relação à sua aplicação.

Um extremo foi vigorosamente defendido pelo presidente Barack Obama em seu discurso de 10 de setembro à nação: "O que torna a América diferente", ele declarou, "o que nos torna excepcionais" é estarmos dedicados a agir "com humildade, mas com determinação", quando detectamos violações em algum lugar.

"Por quase sete décadas, os Estados Unidos foram a âncora da segurança global", um papel que "significou mais do que acertar acordos internacionais; significou assegurar o cumprimento deles".

A doutrina concorrente, o isolacionismo, defende que não mais podemos realizar a missão nobre de correr para apagar incêndios provocados por outros. Ela leva a sério um alerta dado há 20 anos pelo colunista do "The New York Times", Thomas Friedman, de que "conceder ao idealismo o controle quase exclusivo de nossa política externa" pode nos levar a negligenciarmos nossos próprios interesses em nossa devoção às necessidades dos outros.

Entre esses dois extremos, o debate em torno da política externa transcorre.

Nas margens, alguns observadores rejeitam as suposições compartilhadas, apresentando o registro histórico: por exemplo, o fato de que "por quase sete décadas" os Estados Unidos lideraram o mundo em agressão e subversão --derrubando governos eleitos e impondo ditaduras vis, apoiando crimes horrendos, minando acordos internacionais e deixando rastros de sangue, destruição e miséria.

Para essas criaturas equivocadas, Morgenthau forneceu uma resposta. Um acadêmico sério, ele reconheceu que os Estados Unidos violaram consistentemente seu "propósito transcendente".

Mas mencionar essa objeção, ele explica, significa cometer "o erro do ateísmo, que nega a validade da religião em bases semelhantes". É o propósito transcendente dos Estados Unidos que é a "realidade"; o registro histórico de fato é apenas "o abuso da realidade".

Resumindo, o "excepcionalismo americano" e o "isolacionismo" geralmente são compreendidos como variações táticas de uma religião secular, com um domínio quase extraordinário, indo além da ortodoxia religiosa normal no fato de mal poder ser percebida. Como não há alternativa pensável, essa fé é adotada por reflexo.

Outros expressam a doutrina mais toscamente. Uma embaixadora do presidente Reagan na ONU, Jeane Kirkpatrick, concebeu um novo método para rechaçar as críticas aos crimes do Estado. Aqueles não dispostos a desconsiderá-los como meros "tropeços" ou "ingenuidade inocente" podem ser acusados de "equivalência moral" --de alegar que os Estados Unidos não diferem da Alemanha nazista ou de qualquer que seja o demônio do presente. Esse artifício desde então é amplamente usado para proteger o poder de escrutínio.

Até mesmo acadêmicos sérios se curvam. Assim, na atual edição da revista "Diplomatic History", o acadêmico Jeffrey A. Engel reflete sobre a importância da história para os autores de políticas.

Engel cita o Vietnã, onde "dependendo da inclinação política de uma pessoa", a lição é ou "evitar a areia movediça da escalada da intervenção (isolacionismo) ou a necessidade de fornecer aos comandantes militares rédea solta para atuarem sem pressão política" --enquanto realizamos nossa missão de promover estabilidade, igualdade e liberdade ao destruirmos três países e deixarmos milhões de cadáveres.

O número de mortos no Vietnã continua crescendo até hoje por causa da guerra química que o presidente Kennedy iniciou lá --ao mesmo tempo que expandia o apoio americano a uma ditadura homicida para um ataque total, o pior caso de agressão durante as "sete décadas" de Obama.

Outra "inclinação política" é imaginável: o ultraje adotado pelos americanos quando a Rússia invade o Afeganistão ou Saddam Hussein invade o Kuwait. Mas a religião secular nos impede de nos vermos por um prisma semelhante.

Um mecanismo de autoproteção é lamentar as consequências de nosso fracasso em agir. Assim, o colunista do "The New York Times", David Brooks, ruminando sobre o caminhar da Síria para o horror "como de Ruanda", conclui que a questão mais profunda é a violência entre sunitas e xiitas que dilacera a região.

Essa violência é testemunha do fracasso "da recente estratégia americana de retirada com pegada leve" e a perda do que o ex-diplomata Gary Grappo chama de "influência moderadora das forças americanas".

Aqueles ainda iludidos pelo "abuso da realidade" --isto é, fato-- podem se lembrar que a violência entre sunitas e xiitas foi resultado do pior crime de agressão do novo milênio, a invasão americana ao Iraque. E aqueles sobrecarregados por lembranças mais ricas poderiam lembrar que o Tribunal de Nuremberg sentenciou os criminosos nazistas à forca porque, segundo o julgamento do tribunal, agressão é "o crime internacional supremo, que apenas difere de outros crimes de guerra no fato de conter dentro de si mesmo o mal acumulado do todo".

O mesmo lamento é tema de um estudo célebre de Samantha Power, a nova embaixadora americana na ONU. Em "Genocídio: A Retórica Americana em Questão", Power escreve sobre os crimes de outros e nossa resposta inadequada.

Ele dedica uma sentença a um dos poucos casos durante as sete décadas que poderia realmente ser classificado como genocídio: a invasão indonésia ao Timor Leste em 1975. Tragicamente, os Estados Unidos "olharam para o outro lado", relata Power.

Daniel Patrick Moynihan, seu antecessor como embaixador na ONU na época da invasão, viu o assunto de modo diferente. Em seu livro "A Dangerous Place", ele descreveu com grande orgulho como ele deixou a ONU "totalmente ineficaz em quaisquer medidas que tomasse" para colocar um fim à agressão, porque "os Estados Unidos queriam que as coisas transcorressem da forma como ocorreram".

E de fato, longe de olhar para outro lado, Washington deu sinal verde para os invasores indonésios e forneceu imediatamente a eles equipamento militar letal. Os Estados Unidos impediram o Conselho de Segurança da ONU de agir e continuaram dando firme apoio aos agressores e suas ações genocidas, incluindo as atrocidades de 1999, até que o presidente Clinton pediu uma suspensão --como poderia ter ocorrido em qualquer momento durante os 25 anos anteriores.

Mas isso é um mero abuso da realidade.

Também é fácil demais continuar, mas também sem sentido. Brooks está certo em insistir que devemos ir além dos eventos terríveis diante de nossos olhos e refletir sobre os processos mais profundos e suas lições.

Entre elas, nenhuma tarefa é mais urgente do que nos livrarmos das doutrinas religiosas que relegam os eventos de fato ao esquecimento e assim reforçam nossa base para "abusos da realidade" adicionais.

Tradutor: George El Khouri Andolfato

Noam Chomsky

Noam Chomsky é um dos mais importantes linguistas do século 20 e escreve sobre questões internacionais.

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