Prerrogativas do poder

Noam Chomsky

Noam Chomsky

  • John Moore/Getty Images/AFP

    Homem passa por um luminoso com a bandeira americana em Times Square, Nova York. Em pesquisa da BBC, os Estados Unidos foram apontados como a nação mais perigosa, bem à frente do Paquistão

    Homem passa por um luminoso com a bandeira americana em Times Square, Nova York. Em pesquisa da BBC, os Estados Unidos foram apontados como a nação mais perigosa, bem à frente do Paquistão

Perto do final do ano passado, a BBC divulgou os resultados de uma pesquisa realizada pela WIN/Gallup Internacional. O levantamento queria saber: "Hoje em dia, que país que você acredita ser a maior ameaça à paz mundial?"

Os Estados Unidos foram os campeões da enquete e venceram por uma margem substancial, com um número de votos três vezes maior do que o segundo colocado, o Paquistão.

Por outro lado, o debate nos círculos acadêmicos e da mídia dos Estados Unidos tem girado em torno de duas questões: será que o Irã pode ser contido e será que o enorme sistema de monitoramento da NSA é necessário para proteger a segurança dos EUA?

Em vista do resultado da pesquisa, parece que há questões mais pertinentes a serem respondidas: será que os Estados Unidos podem ser contidos e será que outras nações podem se sentir seguras diante da ameaça que os EUA representam?

Em algumas partes do mundo, os Estados Unidos ocupam uma posição ainda mais alta no ranking de supostas ameaças à paz mundial, especialmente no Oriente Médio, onde maiorias esmagadoras consideram os EUA e Israel, seu aliado fiel, as principais ameaças enfrentadas por eles – e não o Irã, que é a ameaça favorita de norte-americanos e israelenses.

Provavelmente, poucos latino-americanos questionariam o ponto de vista do herói nacionalista cubano José Martí, que escreveu em 1894 que "quanto mais os latino-americanos se distanciarem dos Estados Unidos, mais livres e mais prósperos esses povos serão".

Mais uma vez, o ponto de vista de Martí foi confirmado nos últimos anos por meio de uma análise sobre a pobreza realizada pela Comissão Econômica da Organização das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe, divulgada no mês passado.

O relatório da ONU mostra que reformas de longo alcance reduziram drasticamente a pobreza no Brasil, no Uruguai, na Venezuela e em alguns outros países, onde a influência dos EUA é pequena, mas que ela continua sendo abismal em outras nações – ou seja, aquelas que ficaram muito tempo sob o domínio dos EUA, como a Guatemala e Honduras. Mesmo no relativamente rico México, que se encontra sob a égide do Acordo de Livre Comércio da América do Norte, a pobreza é grave. Em 2013, o contingente de pobres mexicanos registrou um acréscimo de 1 milhão de pessoas.

Às vezes, os motivos das preocupações do mundo são reconhecidas de maneira enviesada pelos Estados Unidos, como quando o ex-diretor da CIA, Michael Hayden, ao discutir a campanha de assassinatos com drones promovida por Obama, admitiu que "neste momento, não há nenhum governo no planeta que esteja de acordo com a nossa lógica jurídica para essas operações, exceto o Afeganistão e, talvez, Israel".

Um país normal estaria preocupado com a forma como é visto pelo resto do mundo. Certamente isso seria verdade para um país comprometido com um "nível aceitável de respeito pelas opiniões da humanidade", para citar fundadores dos EUA. Mas os Estados Unidos estão longe de ser um país normal. Os norte-americanos foram os detentores da economia mais poderosa do mundo durante um século e não se deparam com nenhum desafio real a sua hegemonia global desde a 2ª Guerra Mundial, apesar de terem sofrido certo declínio desde então, que foi, em parte, autoinfligido.

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Os EUA, conscientes de seu "soft power" (o poder "suave", exercido por expressões artísticas como a música, o cinema e outras influências culturais), realiza grandes campanhas de "diplomacia pública" (também conhecida como propaganda) para criar uma imagem favorável, que às vezes é acompanhada de políticas válidas e bem-vindas. Mas quando o mundo insiste em acreditar que os Estados Unidos são, de longe, a maior ameaça à paz mundial, a imprensa norte-americana dificilmente relata o fato.

A capacidade de ignorar fatos indesejados é uma das prerrogativas do poder incontestado. Intimamente relacionado a isso está o direito de rever radicalmente a história.

Um exemplo atual pode ser observado nas queixas sobre o crescente conflito entre sunitas e xiitas, que está dilacerando o Oriente Médio, especialmente o Iraque e a Síria. Um tema predominante nos artigos de opinião norte-americanos é a visão de que esse conflito é uma terrível consequência da retirada das forças norte-americanas da região – uma lição sobre os perigos do "isolacionismo".

O ponto de vista oposto é um pouco mais correto. As raízes do conflito entre os muçulmanos são muitas e variadas, mas não é possível negar a sério que essas divergências foram agravadas significativamente pela invasão do Iraque liderada por norte-americanos e britânicos. E nunca é demais repetir que a agressão foi definida durante os Julgamentos de Nuremberg como "o supremo crime internacional", diferindo dos outros na medida em que abrange todo o mal que se segue, incluindo a catástrofe atual.

Uma ilustração notável dessa rápida inversão histórica é a reação norte-americana às atrocidades que são cometidas hoje em dia em Fallujah. O tema dominante gira em torno do pesar relacionado à morte – em vão – dos soldados americanos que lutaram e morreram para libertar Fallujah. Ao darmos uma olhada nas reportagens referentes aos ataques dos EUA em Fallujah, em 2004, percebemos rapidamente que eles estão entre os mais cruéis e vergonhosos crimes de agressão praticados durante uma guerra.

A morte de Nelson Mandela fornece outra ocasião para uma reflexão sobre o impacto notável do que tem sido chamado de "engenharia histórica": ou seja, a manipulação dos fatos históricos para atender às necessidades dos que estão no poder.

Quando Mandela finalmente obteve sua liberdade, ele declarou que "durante todos os anos que passei na prisão, Cuba foi uma inspiração e Fidel Castro, um pilar de força. [As vitórias cubanas] destruíram o mito da invencibilidade do opressor branco [e] inspiraram as massas que lutavam na África do Sul, no que foi um momento decisivo para a libertação do nosso continente – e do meu povo – do flagelo do apartheid. Que outro país é capaz de dar um testemunho de maior abnegação do a que Cuba exibiu em suas relações com a África?"

Hoje, os nomes dos cubanos que morreram defendendo Angola contra a agressão sul-africana apoiada pelos EUA e que desafiaram as ordens norte-americanas para deixarem o país estão inscritos no "Wall of Names", no Parque da Liberdade de Pretória. E os milhares de trabalhadores cubanos da área de ajuda humanitária que apoiaram Angola – em grande parte, à custa de Cuba – também não foram esquecidos.

A versão desses fatos aprovada pelos EUA é bem diferente. Desde os primeiros dias após a África do Sul ter concordado em se retirar do território da Namíbia, em 1988 – território que os sul-africanos ocuparam ilegalmente –, abrindo caminho para o fim do apartheid, o resultado foi aclamado pelo The Wall Street Journal como uma "conquista esplêndida" da diplomacia norte-americana, "uma das realizações mais significativas de política externa do governo Reagan".

As razões pelas quais Mandela e os sul-africanos têm uma imagem radicalmente diferente desses acontecimentos foram explicadas pela magistral investigação acadêmica de Piero Gleijeses, "Visions of Freedom: Havana, Washington, Pretoria, and the Struggle for Southern Africa, 1976-1991" ("Visões da liberdade: Havana, Washington, Pretória e a luta pelo sul da África, de 1976 a 1991", em tradução livre).

Como Gleijeses demonstra, de maneira convincente, a ocupação da Namíbia e a agressão e terrorismo praticados em Angola pela África do Sul foram encerradas pelo "poderio militar cubano", acompanhado de uma "feroz resistência dos negros" da África do Sul e da coragem dos guerrilheiros namíbios. As forças de libertação da Namíbia venceram com facilidade eleições justas e limpas assim que sua realização foi possível. Da mesma maneira, nas eleições de Angola, o governo apoiado pelos cubanos sagrou-se vitorioso – enquanto os Estados Unidos continuaram apoiando os perigosos terroristas da oposição, mesmo depois de a África do Sul ter sido obrigada a recuar.

Ao final, os reaganistas permaneceram praticamente sozinhos em seu forte apoio ao regime do apartheid e suas depredações assassinas perpetradas em países vizinhos. Embora esses episódios vergonhosos possam ser apagados da história interna dos EUA, cidadãos de outros países provavelmente são capazes de compreender as palavras de Mandela.

Nestes e em todos os demais casos, que são muitos, o poder supremo não fornece proteção contra a realidade – mas só até certo ponto.

Tradutor: Cláudia Gonçalves

Noam Chomsky

Noam Chomsky é um dos mais importantes linguistas do século 20 e escreve sobre questões internacionais.

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