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Jamil Chade

Conselho de direitos humanos é sala repleta de representantes de ditadores

Criança-soldado do sudão do sul libertada em cerimônia em Yambio, em fevereiro de 2018  - Stefanie Glinski/AFP
Criança-soldado do sudão do sul libertada em cerimônia em Yambio, em fevereiro de 2018
Imagem: Stefanie Glinski/AFP

Colunista do UOL, em Genebra (Suíça)

18/10/2019 04h00

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Criado para zelar pelos direitos fundamentais no mundo, órgão é controlado por ditaduras e governos que ignoram suas responsabilidades na defesa da liberdade.

Quem entra pela sala do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, tem de passar por um raio-X, num procedimento parecido ao de um aeroporto. Ativistas, defensores, indígenas, jornalistas e vítimas são convidados a dar garantias de que, ao entrar num local quase sagrado, irão adotar postura digna dos valores que são defendidos naquela sala.

Em suas cabeças, um teto multicor criado por um artista espanhol que tenta recriar a gruta de onde sairia a Humanidade. Seu preço: US$ 30 milhões, numa obra que já passou a ser conhecida como a "Capela Sistina da ONU". Aquela caverna seria a metáfora de uma ágora, o primeiro local de encontro dos humanos, a grande árvore africana sob a qual as pessoas se sentavam para falar e o único futuro possível: o diálogo.

Para ter acesso ao "diálogo", porém, a caverna é um dos raros locais na sede da ONU em Genebra que exige tal procedimento de segurança. Claro, o raio-X só não é aplicado para os embaixadores, que entram livremente e gozam de suas credenciais para justificar tal privilégio.

Ao fazer a fila para o controle de segurança e ver como andam apressados os diplomatas sírios, venezuelanos, turcos ou da Coreia do Norte, sempre pensei: que sistema é esse que permite representantes de ditaduras, assassinos e repressores a entrar livremente, enquanto as vítimas são as que são alvo de desconfiança dos seguranças?

Familiares acompanham o sepultamento do corpo de Efrain Mota Ferreira, morto em massacre presídio de Altamira (PA) - Daniel Teixeira/Estadão Conteúdo - Daniel Teixeira/Estadão Conteúdo
Familiares sepultam corpo de Efrain Mota Ferreira, morto em massacre em presídio de Altamira (PA)
Imagem: Daniel Teixeira/Estadão Conteúdo

Nesta semana, a ONU elegeu os novos membros do Conselho, órgão que serve de guia para a defesa dos direitos humanos no mundo. Mas no bastião dos direitos fundamentais, estarão uma vez mais sentando para tomar a palavra, votar e fazer propostas, justamente as autoridades responsáveis pelos crimes.

Pela África, por exemplo, um dos países eleitos foi o Sudão, marcado por um regime que não aceita abrir mão do poder, mesmo depois da queda de Omar al Bashir.

Também terão vaga no órgão Somália e Líbia, dois Estados falidos e com enormes denúncias de violações diárias de direitos humanos. Outro africano na sala é a Mauritânia, acusada de ainda manter 500 mil pessoas numa espécie de semiescravidão.

Locais problemáticos como o Togo, República Democrática do Congo e Eritreia também fazem parte do órgão, erguendo com orgulho a placa com o nome de seus países para defender os direitos de milhões de pessoas pelo mundo.

Na Ásia, os representantes não são nenhum modelo de democracia e direitos humanos.

Depois de prometer matar traficantes, o presidente filipino, Rodrigo Duterte, conseguiu uma vaga para seu país como membro do Conselho. Bahrein, Catar, Fiji, Afeganistão e Paquistão também estão entre os governos cujo objetivo é zelar pelos direitos humanos, entre eles a liberdade religiosa e a liberdade de expressão.

Carros de luxo de filho de ditador africano são leiloados

Band Notí­cias

Nas Américas, nem as denúncias de repressão feitas pela própria ONU, a fome e o colapso das instituições democráticas impediram que os países elegessem a Venezuela de Nicolas Maduro ao órgão.

Ao seu lado, estará o governo de Jair Bolsonaro, acusado pelas Nações Unidas de promover um encolhimento do espaço democrático, abandonar os indígenas e outras populações vulneráveis.

Mesmo na Europa, países que sofrem fortes denúncias como a Armênia e Polônia também ganharam seu lugar no debate.

Varsóvia, ao lado dos tchecos, ainda indica que irá promover uma agenda ultraconservadora no que se refere à família tradicional. Não haveria um problema com tal postura se não fosse pelo fato de que, ao tomar tal caminho, esses governos se recusam a lidar com as violações e abusos que sofre comunidade LGBT.

Chocolate contra o açúcar

Hoje, parte significativa do Conselho de Direitos Humanos está nas mãos de governos que não passariam em qualquer tipo de critério de respeito às liberdades fundamentais.

Mas por qual motivo desejaria um detentor de armas participar de uma marcha pelo desarmamento e pela paz? Ou uma empresa de chocolate promover a luta contra o açúcar?

Por qual motivo um violador de direitos humanos gostaria de estar exposto em tal órgão? Existem pelo menos dois motivos. O primeiro é o de se blindar de ataques, votando contra resoluções que o questione e liderando grupos de países para derrubar propostas incômodas.

Mas também existe o interesse de que, dentro do órgão, o governo consiga determinar a agenda dos debates e apresentar temas de seu interesse. Não, obviamente, do interesse da vítima.

Manifestantes protestam contra o presidente filipino Rodrigo Duterte, em Manila - ROMEO RANOCO/REUTERS - ROMEO RANOCO/REUTERS
Manifestantes protestam contra o presidente filipino Rodrigo Duterte, em Manila
Imagem: ROMEO RANOCO/REUTERS

Hoje, essas ditaduras que buscam um lugar ao Sol contam com as regras ao seu lado: não existem critérios para fazer parte do Conselho. Basta conseguir os votos necessários e, nesta corrida, o que vale é um outro aspecto das relações internacionais: poder.

As normas apenas estipulam que cada região deve apresentar seus candidatos ao Conselho. Mas ai o sistema cai em uma armadilha: para jamais ter de concorrer em público contra um vizinho, um acordo é fechado para que apenas seja apresentado o número exato de países para cada uma das vagas a ser preenchida. Assim, não cabe outra solução para a Assembleia Geral da ONU a escolher aqueles que se apresentaram. Sem concorrência e sem disputa para saber quem é que merece estar num órgão de direitos humanos.

Quando há uma concorrência, ela é mínima ou apenas de fachada. No caso da América Latina, o governo da Costa Rica se apresentou ao pleito de forma improvisada e faltando poucos dias para o voto. Ainda assim, eram três candidatos para duas vagas.

É assim, portanto, que o novo Conselho foi formado e será como resultado dessas imoralidades que os corredores da ONU continuarão a ouvir discursos sem qualquer relação com os crimes que estão ocorrendo.

Com seus carros negros e motoristas esperando na porta, embaixadores mascaram objetivos de poder com discursos e resoluções que exploram o sofrimento das vítimas.

E quando sauditas afirmam estar preocupados com a situação das mulheres no mundo, quando o governo líbio garante que age de acordo com a lei, quando Venezuela diz que todos comem no país ou quando Cuba insiste que a democracia está viva naquela ilha, não há ninguém que se levante para protestar e dizer um simples basta.

Quando é a vez da sociedade civil falar, são limitados a discursos de apenas alguns segundos cada, e no final do debate para não atrapalhar. Se elevam a voz contra aqueles que cometem crimes, são alertados para que respeitem os códigos do local. Não há espaço para ofensas. Quem sai da linha é expulso e tem sua credencial banida. Afinal, não se pode tolerar o desrespeito.

Material da campanha eleitoral do Brasil na ONU omite alguns dos maiores desafios do país em direitos humanos - Jamil Chade/UOL - Jamil Chade/UOL
Material da campanha eleitoral do Brasil na ONU omite alguns dos maiores desafios do país em direitos humanos
Imagem: Jamil Chade/UOL

Teatro diplomático

Há quem alerte que o sistema já faliu. Que não há como respeitar um órgão de direitos humanos com tais membros. Uma das soluções seria a criação de critérios pelos quais os países teriam de cumprir para poder ser eleito. Mas os mais pragmáticos - e não menos cínicos - alertam que se houvesse um critério, difícil seria encontrar um país que mereça estar num órgão de defesa de direitos humanos, inclusive aqueles na Europa e América do Norte.

Há quem defenda - e com razão - que a comunidade internacional apenas vai caminhar se os avanços em direitos humanos ocorrerem graças à cooperação, e não a denúncias. Uma vez mais, porém, essa estratégia é manipulada por governos para retardar ao máximo qualquer tipo de transformação em seus regimes.

Serve então tal Conselho para alguma coisa?

Provavelmente sim e a prova disso é que essas ditaduras são as primeiras que querem estar presentes para impedir seu funcionamento adequado. No fundo, sabem que aquele órgão poderia ser uma arma fundamental nas mãos das vítimas para envergonhar governos e exigir mudanças. E, justamente para evitar seu funcionamento é que o Conselho hoje é ocupado por ditadores e seus aliados.

Com três reuniões por ano, cada sessão do Conselho termina praticamente da mesma forma. A aprovação de resoluções com um impacto questionável sobre a vida das vítimas e uma tradição: uma festa entre todos os diplomatas que vara a noite e que ajuda a descarregar - em copos de tequila, rum ou uísque - a hipocrisia de um teatro diplomático.

Quanto às vítimas de sérios abusos de direitos humanos? Bem, elas podem esperar até a próxima sessão.