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Ter mais gays em produtos culturais não reflete diversidade da sociedade, diz especialista

Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

Noelle Marques

Do UOL, em São Paulo

29/05/2013 06h00

Não é de hoje que gays e relacionamentos homossexuais são representados em filmes, novelas, clipes de música e até histórias em quadrinhos. Mas os personagens e enredos dos produtos culturais conseguem, de modo satisfatório, sensibilizar a população na luta contra o preconceito? Em entrevista ao UOL, Leandro Colling, doutor pela Universidade Federal da Bahia, coordenador do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS), ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura, e ex-integrante do Conselho Nacional LGBT, diz que houve um aumento de personagens LGBTs nos produtos culturais, "mas não basta a quantidade, é preciso que essa quantidade também reflita minimamente a diversidade sexual e de gênero que existe em nossa sociedade". Colling também analisou alguns casos de representação homossexual na cultura (veja abaixo).

UOL: Na sua opinião, há uma maior representação de gays em produtos culturais?

Leandro Colling: Sim, sem dúvida aumentou muito a presença de personagens LGBTs nos produtos culturais. Mas não basta a quantidade, é preciso que essa quantidade também reflita minimamente a diversidade sexual e de gênero que existe em nossa sociedade. Por exemplo: penso que a maioria das produções ainda trata de gays e travestis. Lésbicas, com exceção de séries como "L Word" e "Lip Service", ainda são minoria nas produções. Transexualidade (como em "Transamérica", por exemplo) e intersexualidade (do filme "XXY", por exemplo) praticamente não aparecem.

UOL: Há um avanço e uma maior aceitação da comunidade LGBT por parte da sociedade?

Colling: Difícil dar uma resposta generalista sobre isso. Parte da sociedade aceita e parte rejeita. E quanto mais o personagem subverte normas da sexualidade e do gênero, menos aceitação ele tem.

UOL: Na sua opinião, gays ainda fazem mais papeis cômicos? O estereótipo prejudica?

Colling: Não considero que o estereótipo sempre prejudica. É preciso analisar cada caso com cuidado e estabelecer algumas diferenças. Por exemplo, na trama a personagem possui uma história complexa, ri de si própria ou apenas serve como motivo de chacota e produtora de riso perverso do telespectador?

UOL: Há algumas HQs que apresentam gays heróis. Isso é um fenômeno novo? É positivo na luta contra o preconceito?

Colling: Não acompanho essa produção, mas sem dúvida que a presença da diversidade sexual nesses produtos é positiva na luta contra o preconceito. O trabalho que [o cartunista] Laerte, por exemplo, vem fazendo, é lindo e fundamental.

UOL: As pessoas aceitam mais beijo gay feminino do que de homens?

Colling: Creio que sim, pois o beijo entre mulheres parece ferir menos, agredir menos, o olhar do homem heterossexual, em especial.

UOL: E como o senhor avalia os gays representados nas novelas brasileiras, que tradicionalmente trazem personagens homossexuais?

Colling: O grupo de pesquisa em Cultura e Sexualidade, que eu coordeno e criei na UFBA em 2007, realizou uma grande pesquisa sobre personagens LGBTs nas telenovelas da Rede Globo. A avaliação geral é de que existem três grandes formas com as quais a representação desses personagens foi construída: no início, em especial, os homossexuais estavam mais ligados com a marginalidade e a criminalidade. Depois começou a fase do estereótipo da “bicha louca” afeminada e da lésbica masculinizada, muitas vezes representada de forma a produzir o riso perverso no telespectador. Nos últimos anos, em especial dos 90 para cá, aumentou muito a presença de personagens gays e lésbicas, mas os autores das novelas fizeram o esforço de apagar as diferenças dos homossexuais em relação aos heterossexuais. Em algumas das novelas, o telespectador até tinha dúvidas se o casal era gay ou não. Além disso, esses gays e lésbicas começaram a desejar um modelo de vida muito próximo do modelo heterossexual, o que fica bem visível no ideal de casar e ter filhos, por exemplo.

 

Foto 1: HQ - casamento dos mutantes Kyle e Estrela Polar
Colling: Não acompanho tanto a produção das histórias em quadrinhos, mas é fundamental que essa temática também esteja nessas produções, pois é através delas que muitas pessoas começam a, inclusive, desenvolver o gosto pela leitura. Foi o que aconteceu comigo. Além disso, é fundamental que tenhamos heróis LGBTs. Isso colabora para o desenvolvimento da auto-estima.
Foto 2: HQ - Wolverine e Hércules trocam beijo
Colling: Vale o comentário anterior.
Foto 3: Vídeo "Porta dos Fundos" - beijo entre Fábio Porchat e Gregório Duvivier
Colling: Como fazer humor sem ser preconceituoso, seja com pessoas LGBTs ou qualquer outra dita minoria? Vejo muitos humoristas que dizem que é impossível provocar riso sem ser um tanto politicamente incorreto. Tenho minhas dúvidas. Não considero esse vídeo do beijo como uma peça em prol de uma causa gay. Ele reforça a ideia de que gays e homens possuem uma sexualidade incontrolada, por exemplo. Os demais vídeos desses humoristas ridicularizam gays, especialmente os mais afeminados, e também as travestis e as mulheres. Grosso modo, seguem o típico humor centrado e feito a partir da figura do homem, macho, heterossexual e branco.
Foto 4: Novela "Amor e Revolução" (SBT) - Luciana Vendramini e Gisele Tigre deram o primeiro beijo gay da televisão
Colling: Esse beijo diz várias coisas. Vou apenas citar duas: uma delas é que o caso desmente a ideia de que os/as telespectadores/as não estão preparados/as para ver uma cena dessas. Outra questão: por que tivemos beijo entre mulheres e não entre homens? Uma das respostas, entre tantas, é a de que duas mulheres juntas são vistas, pelos homens heterossexuais, como algo excitante. Eles não enxergam aí uma relação lésbica, mas duas mulheres que poderiam estar juntas na cama com eles. Grande parte dos programas eróticos, dos canais fechados na televisão, é de sexo entre duas mulheres. E esses canais são dirigidos ao público heterossexual masculino.
Foto 5: Filme "Carandiru" - Rodrigo Santoro interpreta o travesti Lady Di
Colling: Primeira observação: se quisermos respeitar a identidade de gênero das pessoas trans, devemos considerar que Lady Di não é um transexual, mas uma transexual, pois ela se apresenta com uma identidade feminina e não masculina. O mesmo vale se ela se identificasse ou fosse identificada como travesti. Essa representação foi positiva no sentido de humanizar a história de todas as pessoas detidas nas prisões, mas eu sempre pergunto por que quase sempre as personagens trans, nas obras artísticas, estão automaticamente ligadas com a criminalidade? É preciso contemplar também a diversidade existente dentro do universo trans.
Foto 6: Filme "O Golpista do Ano"
Colling: Esse é um filme muito interessante. Se, por um lado, aborda a possibilidade de um homem casado, pai de família e heterossexual assumir, depois, uma identidade gay, e tenha no elenco atores muito conhecidos, novamente temos uma representação do homossexual ligado com a criminalidade. Essa associação é histórica, esteve também muito presente nas primeiras telenovelas da Globo aqui no Brasil.
Foto 7: Clipe "Don’t Deny Your Heart", da banda Hot Chip
Colling: Esse clipe traz uma ótima provocação e abordagem da possibilidade de ser gay e jogador de futebol ao mesmo tempo, o que é tido como praticamente impossível. Mas, ao mesmo tempo, me incomoda essa mensagem subliminar de que, se dois homens se beijarem em público, todos os demais não irão resistir e também começarão a se beijar com pessoas do mesmo sexo. É como se todos, no fundo, fossem gays enrustidos. Acho complicado pensar assim.
Foto 8: Clipe "Scared of Falling in Love", de Andre Tonanni
Colling: Muito bacana esse clipe, no entanto, também uma consideração. Penso que ele dá a entender que basta apenas ao sujeito querer, deixar o coração falar e mandar, e você terá coragem, ou melhor, acabará o seu medo de se apaixonar por alguém. Se tudo fosse uma questão apenas pessoal, de cada um de nós, os problemas dos preconceitos seriam bem mais fáceis de serem resolvidos.
Foto 9: Série "Glee"
Colling: Essa série merece elogios não apenas por causa dos personagens gays, mas por ligar toda a história com várias outras personagens estigmatizadas. A série mostra como os preconceitos atingem várias pessoas e o que devemos, portanto, lutar por uma sociedade de respeita às diferenças. O problema é que aqui no Brasil ela foi ou é exibida na madrugada e, além disso, também reflete uma realidade um tanto distante da brasileira. Queria muito que as nossas escolas tivessem, por exemplo, a estrutura das escolas de "Glee".
Foto 10: Filme "O Segredo de Brokeback Mountain"
Colling: Esse filme foi muito analisado por pesquisadores. De um lado, estão os que elogiaram a obra, pela audácia de abordar o tema em uma grande produção e também por revelar o quanto a sociedade impede o final feliz dessas relações entre dois homens apaixonados. De outro lado, vários pesquisadores criticaram o fato de que os homens gays novamente são representados dentro de determinados ideais de masculinidade e de corporalidade bem normativos. Penso que as duas leituras são igualmente válidas, possíveis e interessantes.
Foto 11: HQ - versão gay do personagem Lanterna Verde
Colling: Não conheço esse produto.
Foto 12: Filme "Behind the Candelabra"
Colling: Outro filme muito interessante, que apresenta várias nuances. Esses personagens gays mais fechativos, como Liberace, dentro de uma estética camp podem ser muito potentes para desconstruir determinadas normas de gênero. O problema é que, via de regra, eles ficam atrelados a um par que representa o ideal do macho e, nesse momento, parece voltar o binarismo: um dos gays é a “mulherzinha” da relação e outro é o "bofe". Penso que devemos ter produções que também desconstroem esses binarismos, que são tão arraigados e que produzem tanto desrespeito à diversidade.