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"Senti os chutes na alma", diz papa Francisco sobre linchamentos

Pablo Calvo

Do Clarín

11/04/2014 14h32

Em uma carta, o Papa expressou forte repúdio à violência e à justiça pelas próprias mãos. Ele ficou comovido com a morte de um jovem que tinha roubado uma bolsa em Rosário.

Contaram ao Papa Francisco o caso de Rosário, onde um jovem de 18 anos foi espancado por 50 moradores que o acusaram de ter roubado a bolsa de uma mulher. David Moreira foi reconhecido por uma tatuagem no tornozelo que ele tinha feito em janeiro, com as iniciais dos nomes de seus três irmãos.

“A cena doeu em mim. Sentia os chutes na alma”, escreveu o Papa em uma carta aos irmãos Rodolfo e Carlos Luna, dois humanistas que moram na Suécia, mas estão atentos ao que acontece na Argentina.

A mensagem de Francisco contém uma profunda reflexão contra a violência e adverte que toda a sociedade está envolvida no drama da justiça pelas próprias mãos, que desde o Natal registra 24 episódios e nove mortes de supostos delinquentes.
Em Callao e Posadas, no bairro da Recoleta, um ladrão foi encurralado e espancado até a polícia intervir. Um ladrão motoqueiro foi libertado em Córdoba e um jovem apareceu com o rosto deformado pelos golpes em Posadas, Misiones. Os atacantes justificam suas ações no que consideram uma “ausência do Estado” diante da insegurança.

David Moreira foi espancado no dia 22 de março e morreu três dias depois. Ele não tinha antecedentes policiais. Trabalhava entre tijolos e solas, como ajudante de pedreiro e em uma fábrica de calçados. Não tinha dinheiro. Estudou até onde pôde, segundo ano do colegial, que é obrigatório até o quinto ano.

“Ele não era um marciano, era um jovem do nosso povo”, escreveu Francisco em sua carta, inspirada em um Davi derrotado por Golias.

“Lembrei-me de Jesus; o que ele diria se fosse o árbitro ali?: quem estiver sem pecado que dê o primeiro chute”.

Francisco se colocou na pele do rapaz que aparece em uma foto, desarticulado como um boneco, ensanguentado como a vítima de uma guerra, ao lado de uma moto que o olha como um touro esmagador. E se expressou assim: “Tudo me doía, o corpo do rapaz me doía, o coração dos que chutavam me doía”.

“Pensei: esse rapaz foi feito por nós, cresceu entre nós, educou-se entre nós. O que foi que falhou?”, perguntou o Papa, sem as respostas ou talvez com todas elas, porque desde que ele conduz a Igreja ele tem dito que o delito não se combate com revanches nem com grades, mas com inclusão social, com uma casa por família, com comida e sem submissão à “tirania do dinheiro”.

Jorge Bergoglio foi professor de literatura espanhola em Santa Fé, em 1964 e 1965. Trabalhava com os clássicos na mão e Lope de Vega era um deles, não pela perfeição de sua métrica nem pela riqueza de seus sonetos, mas pelo relato social que abrangia.

- ”O que é que você quer que o povo tente?”

-“Morrer, ou dar morte aos tiranos, pois somos muitos, e eles pouca gente”, diz a página de Fuente Ovejuna onde o povo se subleva e decreta: “À vingança vamos!”.

A essa incitação se une Laurencia, a jovem amada por Frondoso e vexada por Fernán Gómez, o comendador-mór da Ordem de Calatrava: “Que adagas não vi em meu peito?”

“Que palavras, que ameaças, e que delitos atrozes por render minha castidade a seus apetites torpes”.

Hoje não há versos, mas há cartazes, anônimos, que, por exemplo, avisam: “Toda pessoa que for flagrada cometendo algum delito será julgado pelo povo, por não contar com segurança municipal” ou “Trombadinha, se nós te pegarmos você não vai para a delegacia. Nós vamos te linchar!!”.

O cardeal Mario Polli está preocupado: “Existem muitos sinais de morte na Argentina. Nós, os cristãos, não devemos acrescentar nem uma gota de violência a esta situação”.

Há um parágrafo final na carta de Francisco, onde ele marca, por causa do linchamento de Davi, que “o pior que pode nos acontecer é nos esquecermos da cena. E que o Senhor nos dê a graça de poder chorar ..., chorar pelo jovem delinquente, chorar também por nós ”.

O jornal Clarín leu a carta para Lorena Torres, a mãe de Davi: “Sinto a mesma dor que Francisco, um homem de bom coração. Porque ninguém pode ser assassinado assim, seja inocente ou culpado”.

Texto originalmente publicado no site do Clarín em Português