No Brasil, onde o futebol nunca teve preço, hoje os excessos representam um insulto

José Sámano

De Curitiba (no Paraná)

O Mundial começa com a afronta popular pelas despesas, os atrasos na organização e o valor dos prêmios. Também se impõe a preocupação dos patrocinadores diante da corrupção com Catar 2022 e a grande quantidade de lesões por causa do calendário apertado

À espera de que a bola role e ver se ainda serve de anestésico, a nomenclatura do futebol enfrenta espasmos em uma situação paradoxal: será exatamente no Brasil, seu viveiro mais feliz, que a bolha vai estourar? É possível que uma tabela com 64 partidas e 736 jogadores não possa justificar a despesa em um país que sempre foi conhecido pela excelência do futebol?

Pelo eco que chega ao Brasil, terra de Leônidas, Pelé e Ronaldo, a resposta é não. Com o futebol como bandeira não vale tudo e a dois dias do início desta 20ª Copa do Mundo, a Fifa e seu pesqueiro político encontram uma oposição que já transcende o popular. A rua, onde se priorizam outras necessidades, protesta contra o esbanjamento, e até os patrocinadores elevam a voz, temerosos de que sua imagem seja manchada.

No Brasil, onde o futebol nunca teve preço, hoje os excessos representam um insulto. Por um lado, torcedores incluídos, multiplicam-se as vozes contra esse realismo mágico dos gabinetes em que os gastos triplicaram --chegando a 2,5 bilhões de euros (R$ 7,5 bilhões) contra o 1 bilhão de euros (R$ 3 bilhões) gastos pela África do Sul-- na construção de estádios. Alguns tão desnecessários quanto o de Manaus, onde foram injetados cerca de 200 milhões de euros (R$ 600 milhões) em um lugar onde o público médio nas partidas locais beira os 500 espectadores.

E o que dizer de Brasília, capital que nunca cultivou o futebol, mas que atirou a casa pela janela como nenhuma sede e construiu uma catedral no valor de 450 milhões de euros (R$ 1,3 bilhão)? Já é chocante que esse estádio leve o nome de Garrincha, aquele maravilhoso passarinho inútil e disforme, que ficou conhecido como a "alegria do povo" por seu infinito catálogo de dribles e que morreu na absoluta miséria em 1983.

Por mais que o governo local saliente que em uma década a classe média brasileira passou a 42 milhões de pessoas e outros 36 milhões se afastaram do limite da pobreza, o povo ainda tem claras prioridades. O suposto maná do Mundial não cai em um país que sempre teve no futebol sua melhor vitrine, o orgulho de sua gente, de qualquer condição social.

Com São Paulo, cenário da partida inaugural de quinta-feira (12) entre a seleção Canarinho e a Croácia, à beira do colapso total por causa de uma greve do metrô, na maioria das sedes se apressam as tarefas pendentes com as obras. Em algumas, o atraso é tal que a organização decidiu reduzir a lotação por falta de tempo para colocar os assentos e passar com garantias pelo controle de segurança.

Em seis estádios se descartou o sinal de wi-fi. Em outros, há sérias dificuldades adicionais. É o caso de Curitiba, onde fica o quartel-general da Espanha, que aterrissou na noite de domingo (8) sob chuvas torrenciais. As inundações no Estado do Paraná, onde a chuva é um postal diário e a umidade não baixa de 100%, complicam tudo.

Não é por acaso que a Roja [Vermelha], tão campeã como pouco previsível, peça agora uma mudança de residência. Em Salvador, na Bahia, 2.300 quilômetros ao norte, onde vai estrear na sexta-feira contra a Holanda, o time jogará com 15 graus a mais de temperatura, assim como no Rio de Janeiro contra o Chile, no segundo encontro. Se chegar ao terceiro duelo, com a Austrália, então deveria abrigar-se em Curitiba.

Enquanto o governo brasileiro se enreda no Mundial, a Fifa cambaleia na arquibancada. Entre terça-feira e quarta-feira (11) está previsto seu congresso em São Paulo, e desta vez não haverá muita pompa. Os indícios de corrupção com a designação do Catar 2022 preocupam seus principais apoiadores financeiros, como Sony e Adidas, que pedem explicações.

E não são os únicos. Boa parte do suculento negócio depende deles. Em parte, é desse caixa que saem os valiosos prêmios que, arrecadados pela Fifa, serão divididos entre os jogadores espanhóis --720 mil euros (R$ 2,1 milhões) para cada um.

Em Camarões, país com uma renda per capita de 900 euros (R$ 2,7 mil), os internacionais quase se amotinam por acharem pouco 76 mil euros (R$ 228 mil). Para o público, é difícil entender esses dois casos, por mais que esteja acostumado a que o futebol paire em sua própria nuvem. Talvez por ser considerado o jogo do povo, suas contas escandalizam e são muito mais fiscalizadas que as de outros espetáculos.

Se a pressão não baixar no Brasil, os hierarcas do futebol terão de revisar o esquema. O filão pode explodir. E não só o econômico. A voracidade financeira e o extremo mercantilismo saturaram de tal forma o calendário que é difícil lembrar um grande campeonato com tantas baixas e tantos jogadores no limite, de Messi a Cristiano, passando por Diego Costa. Não conseguem mais, e a feira se ressente sem seus melhores intérpretes na plenitude.

Com tantos problemas de fundo, convém medir se nestes tempos a bola ainda servirá de calmante ou, pelo contrário, chegou a hora de revisar a fundo o modelo, perturbador até na pátria do Maracanã. Seria a penúltima contribuição do Brasil para o maravilhoso jogo que lhe ensinou aquele descendente escocês chamado Charles Miller, que os historiadores locais citam como o pai da primeira bola que brincou por estas terras no final do século 19.

Paradigmático: a bolha é questionada como nunca onde o futebol jamais ficou sem um sorriso.

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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