Novo memorial na França é memória mais sombria do país no século 20

Carlos Yárnoz

Em Rivesaltes (França)

  • RAYMOND ROIG/AFP

    Manuel Valls, premiê da França, participa da inauguração de memorial em Rivesaltes

    Manuel Valls, premiê da França, participa da inauguração de memorial em Rivesaltes

Memorial lembra os 60 mil espanhóis, judeus e argelinos encerrados no maior campo de concentração do Ocidente, construído em Rivesaltes

Em Rivesaltes, no sul da França, a 30 quilômetros da fronteira com a Espanha, dormiu durante 70 anos um vergonhoso capítulo da história da França e da Europa. Em um descampado varrido pelo vento norte Tramontana, ainda são visíveis os esqueletos de dezenas de barracões e latrinas. É o campo de concentração de Rivesaltes, o maior dos construídos no Ocidente.

De 1939 a 2013, aqui sobreviveram mais de 60 mil "indesejáveis". Os primeiros, refugiados espanhóis. Depois, judeus, ciganos, alemães, colaboracionistas e harkis argelinos [soldados que lutaram ao lado dos franceses na guerra de independência] --estes últimos, migrantes irregulares. Nesta sexta-feira (16), o primeiro-ministro francês, Manuel Valls, inaugurou no lugar um memorial. É hora de assumir a história.

A Catalunha francesa, na região de Languedoc-Roussillon, foi em 1939 o refúgio de 500 mil espanhóis de "La Retirada", o êxodo que todo mundo conhece na região, mas não na Espanha. Um deles era o comandante Victoriano Gómez Díaz, de Torrejón el Rubio (Cáceres). Ele entrou em julho de 1940 no campo de 600 hectares de Rivesaltes, no qual seriam levantados ao todo 650 barracões.

"Ele dormia em um catre com muita umidade. Havia piolhos, sarna... Comiam pouco e mal. Passavam muito frio. Os guardas, muitos deles marroquinos, lhes davam surras." É o que conta sua filha, Rosy Gómez, que hoje vive em Argelès-sur-Mer, ao lado da enorme praia onde se amontoavam os espanhóis antes de enviá-los para outros campos.

Gómez preside a associação Filhos e Filhas de Republicanos Espanhóis e Crianças Exilados e organiza todos os anos a Marcha da Retirada, para percorrer caminhos que foram usados pelos republicanos espanhóis em sua entrada na França pelos Pireneus. Aos 63 anos, ela ainda se emociona quando mostra em campo pela enésima vez tumbas, monólitos, fotos da época. "Este anel de osso de animal, com as iniciais V.G., foi feito por meu pai em Rivesaltes."

Um dos poucos sobreviventes espanhóis que passou pelo campo é Gilbert Susagna, 80, que vive em Perpignan (França). Ele foi encerrado com sua mãe em Rivesaltes em 1941. "Tinha só 5 anos. Como era criança, não tenho recordações sinistras." Veio de Almenar (Lleida, Espanha). Seu pai, comunista, era vigilante do povoado. Perdeu um pulmão na batalha de Madri e fugiu para a França em 1939. "Os judeus e os ciganos passavam muito mal, contava minha mãe. Eu, como criança, nem tanto, mas me marcou para toda a vida." Nesta sexta-feira, ele esteve no memorial.

Quase metade dos 20 mil espanhóis que passaram por Rivesaltes foram enviados aos campos da morte nazistas; 65% morreram. Também perderam a vida 2.300 dos 7.000 judeus deportados para lá. "Meu pai foi enviado para Mauthausen em 1941, e no último momento, uma mão amiga o separou quando já o colocavam no trem", narra Rosy Gómez.

No campo, projetado e administrado por autoridades francesas, foram reclusos mais tarde soldados alemães presos depois da Segunda Guerra Mundial, colaboracionistas e, a partir de 1960, harkis argelinos, as milícias que se uniram aos franceses contra os partidários da libertação da Argélia. Para fechar o círculo da ignomínia, nos anos 1980, 1990 e até 2007 eram enviados para lá os migrantes irregulares. Até 2013, eles permaneceram em um centro próximo.

O passeio entre barracões e latrinas causa tremores. Cada nave tem 30 metros de comprimento, 6 metros de largura e 5 metros de altura. As paredes e portas frágeis não protegiam os refugiados amontoados do vento gelado no inverno nem do calor asfixiante no verão. "Era terrível. As doenças, o frio... o vento, o vento...", repetem os sobreviventes com quem falei.

"As crianças voavam", diz durante o trajeto entre os barracões o presidente do comitê científico do memorial, Denis Peschanski. Seu pai lutou como brigadista em Albacete na guerra civil espanhola e foi internado em campos franceses.

As tentativas de destruir as provas deste buraco negro foram numerosas. Em 1998, foram encontrados em um depósito de lixo milhares de arquivos do campo. Governo e autoridades locais decidiram derrubar as barracas. Foram impedidos pelas associações civis, os filhos de exilados espanhóis e a sensibilidade de algumas autoridades regionais.

Um dos que se mobilizou foi o prefeito socialista de Argelès, Pierre Aylagas, filho de um agricultor republicano espanhol preso em vários campos, entre eles Rivesaltes. "Trabalhei por este memorial porque lembra os valores que eu defendo", diz em seu gabinete.

O memorial, obra do conhecido arquiteto Rudy Ricciotti, é um enorme edifício de cimento sem janelas, enterrado sob o solo, para não tirar o protagonismo dos barracões ao redor. É um símbolo do encerramento forçado. Em seu interior, em 4.000 m², uma grande sala com fotos, vídeos, mapas, um auditório e um grande espaço pedagógico para alunos e professores.

"Simboliza uma etapa pouco gloriosa da França, mas que finalmente é reconhecida", disse por telefone Geneviève Dreyfus-Armand, prestigiosa historiadora do exílio. "Seria bom que a Espanha também reconhecesse seus passados sombrios. Um povo sem memória não pode construir uma verdadeira democracia. Não se podem confundir vítimas e carrascos."

Do ato desta sexta-feira participaram Valls e mais três ministros franceses, além de coletivos de afetados. Da Espanha, esperava-se uma baixa representação. "Um escândalo", dizem os organizadores.

As ignomínias de Rivesaltes

  • 1939: La Retirada: o êxodo de 500 mil espanhóis. Milhares deles constroem barracões. Houve 650 em 600 hectares.
  • 1941: 6.475 internos no campo, metade espanhóis, um terço judeus.
  • 1941-42: 21 mil detidos. Espanhóis, judeus e ciganos. Deportações de judeus (2.300) para Auschwitz e de espanhóis (8.000 a 10 mil) para vários outros campos de extermínio, sobretudo Mauthausen.
  • 1944-48: Prisioneiros de guerra alemães e colaboracionistas franceses.
  • 1957-62: Formação de tropas para a guerra da Argélia. Prisão para partidários da independência desse país.
  • 1962-64: 22 mil harkis repatriados da Argélia.
  • 1977: Saem as últimas famílias de harkis.
  • 1986-2007: Centro de retenção de migrantes irregulares.

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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