Policial branco assassina negro nos EUA. E se não houvesse vídeo?
Tragicamente, essa é uma história que a imprensa americana tem a sensação de já ter contado demais. Tudo começou com uma mera abordagem policial. Na cidade de North Charleston, na Carolina do Sul, Walter Scott, um homem negro de 50 anos, circulava em um veículo com uma lanterna quebrada. Ele fugiu, mas um policial o alcançou e, quando ele tentou novamente fugir, o agente atirou oito vezes contra o homem, que foi atingido cinco vezes e caiu.
Em um primeiro momento, o policial havia alegado legítima defesa, afirmando que Walter Scott havia tentado tomar dele seu Taser [arma de eletrochoque]. Só que alguém estava gravando tudo em vídeo por trás da grade de um jardim, e as imagens, que o "New York Times" e o "Charleston Post & Courier" divulgaram na quarta-feira (8), contradizem totalmente a versão do policial.
O policial, Michael Slager, 33, servia o departamento havia cinco anos, sem nunca ter recebido punições. Duas queixas haviam sido feitas contra ele por uso excessivo de força, mas elas não resultaram em nada, de acordo com o "Post & Courier". Interrogado pouco após a divulgação do vídeo, ele foi indiciado por assassinato e pode ser condenado à prisão perpétua.
"A população de North Charleston lembra a de Ferguson"
Foi justo a existência desse vídeo, gravado por uma pessoa cuja identidade não foi revelada, que transformou um caso que poderia ter permanecido como mais um incidente, como tantos outros nos Estados Unidos, onde a palavra da polícia concorre com a da vítima. "Sem esse vídeo, teria sido difícil para nós determinar o que aconteceu", reconheceu o prefeito de North Charleston, Keith Summey. "O que aconteceu hoje não acontece o tempo todo", comentou o advogado da família de Walter Scott, fazendo alusão ao indiciamento do policial. "E se não houvesse vídeo? Se não houvesse testemunha? Nada disso teria acontecido".
North Charleston, terceira maior cidade da Carolina do Sul, tem uma distribuição demográfica que lembra a de Ferguson, onde o jovem negro Michael Brown morreu em agosto de 2014 após uma abordagem policial. "North Charleston é diferente do resto da Carolina do Sul", observa o "New York Times". "Dois terços dos habitantes do Estado são brancos, enquanto há mais habitantes negros (47%) em North Charleston do que brancos (41%)."
Assim como em Ferguson, o número de policiais brancos (80%) ali é amplamente superior ao de policiais negros, segundo dados divulgados em 2007 pelo Departamento de Justiça americano e citados na quarta-feira pela imprensa local. A National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), organização de defesa dos direitos civis, explicou após a tragédia que as relações com a polícia local haviam melhorado ligeiramente no nível do diálogo, mas que "nada mudou na base". Em 2011, ela havia acusado as forças policias de "discriminação racial" na abordagem, afirmando que os jovens negros eram parados quatro vezes mais que os jovens brancos. A American Civil Liberties Union (ACLU), uma organização similar, que formulou as mesmas acusações, espera que a investigação que foi aberta "não fique somente neste incidente".
Cobertura da imprensa sobre as últimas tragédias
É claro, a imprensa americana fez paralelos com as últimas tragédias midiatizadas, "onde policiais fizeram uso de força letal, como em Nova York, Cleveland, Ferguson e outros lugares. Essas mortes precipitaram um debate nacional sobre o uso da força por parte da polícia, especialmente diante de homens negros". Grandes manifestações contra a impunidade policial aconteceram no final de 2014, e slogans como "Black lives matter" ("A vida de negros importa") ou "I can't breathe" ("Não consigo respirar") se tornaram gritos de guerra.
Dois dos casos trágicos mais simbólicos também haviam sido gravados em vídeo sem o conhecimento dos policiais. Em Nova York, Eric Garner morreu asfixiado por um policial que o havia detido para averiguações por estar vendendo cigarros ilegalmente na rua. O policial em questão não foi indiciado.
Em novembro de 2014, Tamir Rice, um garoto de 12 anos, foi morto em Cleveland enquanto carregava uma arma de brinquedo em uma praça. O inquérito continua aberto, mas também nesse caso ninguém foi indiciado.
Sem dados numéricos sobre pessoas mortas pela polícia
Ninguém sabe dizer com exatidão o número de pessoas que morrem nas mãos da polícia americana. Entre 2003 e 2009, o departamento de Justiça e o FBI registraram 4.813 mortes "ligadas a uma detenção", o que inclui as palavras "acidentais", "naturais", os suicídios e os homicídios. Estes últimos correspondem a 61,5% do total, ou seja, 412 mortes por ano em média.
Mas esses números são incompletos. Como lembra o pesquisador Didier Fassin, os dados provêm de declarações voluntárias dadas por cada delegacia americana. Os números em questão dizem respeito a "somente 750 das 17 mil delegacias do país, ou seja, 4%". E isso sem contar que o FBI só registra os "homicídios justificados", explica a publicação semanal "Mother Jones".
"Isso fornece um resultado incompleto, que só contabiliza os casos quando um policial mata um criminoso. Isso não inclui necessariamente os casos que envolvem vítimas como Michael Brown, Eric Garner e outros que não estavam armados no momento dos acontecimentos (...) Os dados são fragmentados e dispersos. Nenhum departamento parece registrar sistematicamente o número de pessoas não armadas alvejadas ou mortas pela polícia."
Entrevistada pela mesma revista, Delores Jones-Brown, pesquisadora da John Jay College of Criminal Justice de Nova York, detalha seu trabalho explicando ter "identificado dezenas de homens e mulheres negros mortos pela polícia desde 1994". Ela constatou que "a maior parte dos policiais não são indiciados ou condenados."
Para o "Washington Post", a presença de vídeos, sejam eles provenientes de testemunhas externas ou de aparelhos que os policiais são obrigados a carregar, "se torna um elemento crucial" no processo judiciário que se segue a um incidente fatal que envolva um policial.
Philip M. Stinson, um criminologista da Universidade de Bowling Green State, explica que: "O vídeo mudou tudo, pois ele fornece uma documentação que não existia antes. Agora cidadãos comuns, quando reconhecem que há uma disputa acontecendo, começam a registrar vídeos com seus celulares."
Após esses vários incidentes, o governo americano reagiu fazendo uma série de recomendações para reformar o funcionamento das polícias locais, posicionando-se a favor da instalação de câmeras de vídeo em policiais, para que qualquer eventual incidente seja gravado.
Mas como observa o "Washington Post", "essas gravações não levam automaticamente à condenação do policial". A morte de Eric Garner, obeso e asmático, cujas últimas palavras, registradas pelas câmeras, foram "Não consigo respirar", está aí para lembrar-nos disso.
Tradutor: UOL