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Risco de extermínio: pandemia e Bolsonaro ameaçam indígenas isolados

Indígenas isolados, de etnia desconhecida, no Acre - Gleilson Miranda/Governo do Acre
Indígenas isolados, de etnia desconhecida, no Acre Imagem: Gleilson Miranda/Governo do Acre

Maria Fernanda Ribeiro*

15/11/2021 04h00

O assassinato de dois indígenas isolados por garimpeiros na Terra Indígena Yanomami, divulgado há duas semanas pela Hutukara Associação Yanomami (HAY), é uma tragédia que vinha sendo anunciada de vários lados.

Meses antes, Davi Kopenawa Yanomami já alertava, em entrevista à Repórter Brasil, sobre a situação dos moxihatëtëmas. "Estou preocupado com os parentes isolados porque o perigo está chegando para eles. Estamos cercados pelo garimpo, e tem garimpeiro que gosta de matar índio", disse o líder, reconhecido mundialmente como defensor da TI (Terra Indígena) Yanomami, em Roraima. "Eles são meus vizinhos, meus irmãos e estamos lutando para o garimpeiro não chegar até eles."

Outro aviso do risco que corriam estava estampado com letras vermelhas no ranking Alerta Povos Indígenas Isolados Covid-19, do Opi (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato). A ferramenta é um termômetro que mede o grau das ameaças — agravadas com a pandemia de coronavírus — contra os isolados. No primeiro lugar da lista, está justamente a área da TI Yanomami onde vivem os moxihatëtëmas. O principal agravante? Garimpo.

Mas os garimpeiros são apenas uma das ameaças aos isolados. O ranking do Opi e relatos de lideranças indígenas alertam para uma "tempestade perfeita" que põe em risco a sobrevivência deles. Primeiro, temos o desmonte das políticas pró-indígenas do governo de Jair Bolsonaro, que enfraqueceu a fiscalização dos territórios e permitiu desmatamento recorde — nas TIs com isolados houve um aumento de quase 1.500% durante o governo atual, se comparado à década anterior (2009 a 2018), segundo o Instituto Socioambiental (ISA).

Depois, veio a pandemia, que dificultou a proteção das terras indígenas, deixando esses povos cada vez menos isolados e mais à mercê de garimpeiros, grileiros, madeireiros, missionários e até traficantes.

Vetores da destruição -- e do vírus

Durante a atual "tempestade", o desmatamento e o garimpo atuam também como vetores da covid-19. Ambas as atividades foram responsáveis por abrir caminho para que o vírus contaminasse ao menos 22% dos indígenas infectados, segundo uma pesquisa do economista Humberto Laudares.

São justamente os maiores protetores da floresta quem mais sofrem com essa dupla pandemia sanitária e ambiental. Infelizmente, as políticas do governo estão a favor das pandemias e contra os indígenas"
Humberto Laudares, economista

Para Angela Kaxuyana, do movimento indígena Coiab, é desesperador saber que a vida dos isolados, que dependem de um território preservado, está em risco. "Sempre existiram invasões e tentativas de desaparecer com os isolados. Mas antes desse governo muito declarado contra os indígenas, as pessoas agiam de uma forma mais tímida", afirma Kaxuyana. "Hoje o que intensifica essa ameaça é que você tem o presidente declarando que tem como agenda oficial esse desmonte [de políticas pró-indígenas], além da pandemia."

Para ela, a covid segue sendo uma ameaça aos isolados: "Se algum for contaminado, teria um genocídio em dois ou três dias". Os riscos para eles são maiores por serem mais vulneráveis a doenças - uma gripe pode causar mortes em massa, caso dos nambikwaras. Há atualmente 114 registros da presença de isolados, sendo que 28 são confirmados, segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio).

Confira abaixo como a pandemia e as políticas da atual gestão vêm estrangulando os territórios e a sobrevivência desses povos.

TI Araribóia - 'Perdemos o controle; nossa terra está toda invadida'

Se no primeiro lugar do ranking (a TI Yanomami) é o garimpo a principal ameaça, são os madeireiros que ameaçam o território na segunda posição: a TI Araribóia, no Maranhão. É ali que os guajajaras convivem com os isolados awá guajás. Foi essa a área que mais sofreu com o desmatamento, segundo o Sirad de agosto. Os invasores derrubaram uma área equivalente a 85 campos de futebol — aumento de 78% em relação ao mês de 2020.

Indígena em isolamento awá guajá - Flay Guajajara/Mídia Índia - Flay Guajajara/Mídia Índia
Indígena em isolamento awá guajá
Imagem: Flay Guajajara/Mídia Índia

Edivan Guajajara conta que, em 2019, o primo Flay estava na floresta quando se deparou pela primeira vez com os awás. "Nossos anciãos diziam que havia outro povo convivendo no mesmo território, mas a gente não acreditava porque nunca tinha visto. Foi quando o Flay saiu para caçar e viu".

As invasões cresceram nos últimos anos e os isolados têm de fugir diariamente da exploração ilegal de madeira, conforme relatam Edivan e Flay. Ambos são do grupo Guardiões da Floresta, uma organização de indígenas que atuam na proteção do território — o que seria uma função do governo.

Edivan Guajajara com o grupo Guardiões da Floresta, composto de indígenas que atuam na proteção do território Araribóia - Flay Guajajara/Arquivo pessoal - Flay Guajajara/Arquivo pessoal
O grupo Guardiões da Floresta, composto de indígenas que atuam na proteção do território Araribóia
Imagem: Flay Guajajara/Arquivo pessoal

Perdemos o controle e nossa terra está toda invadida por madeireiros. Mas, continuaremos a proteger nosso território e nossos parentes isolados, porque nesse tempo de pandemia é muito arriscado para eles"
Edivan Guajajara, da organização Guardiões da Floresta

Ele conta ainda que no período crítico da pandemia, os guajajaras evitaram ir caçar a longas distâncias para evitar contato com os awás. "Mas os madeireiros sabiam que a gente não estava mais fazendo monitoramento e aproveitaram para invadir."

TI Kaxinawá - 'Estamos preocupados com nossos parentes isolados'

Empatado no segundo lugar com a Araribóia no ranking está a TI Kaxinawá, no Acre, onde vivem os huni kuins e indígenas isolados (de etnia desconhecida).

Era raro para os huni kuins encontrar pegadas, barreiras e tocaias deixadas pelos isolados. Agora, eles encontram esses vestígios com mais frequência. Prova de como os "parentes" vêm sendo obrigados a se aproximar para caçar ou pedir ajuda, já que a área onde vivem está sendo pressionada pelo desmatamento.

"Compartilhamos nossa terra com os isolados há gerações e estamos preocupados, pois passamos por uma situação delicada com as queimadas, abertura de estradas e pandemia", afirma Ame Huni Kuin, líder espiritual do grupo, que é responsável pelo monitoramento e proteção dos isolados.

Vestígios dos isolados que vivem Terra Indígena Kaxinawá  - Ame Hunikuin / Arquivo pessoal - Ame Hunikuin / Arquivo pessoal
Vestígios dos isolados que vivem Terra Indígena Kaxinawá
Imagem: Ame Hunikuin / Arquivo pessoal

TI Piripkura - O risco da extinção de um povo

Sob o risco de serem mortos e, assim, vermos o extermínio de um povo. Essa é a situação dos piripkuras, que habitam uma terra indígena em Mato Grosso e tentam se refugiar na floresta nos poucos espaços que ainda restam longe dos grileiros e ruralistas. Sob desmatamento recorde em 2021, a Terra Indígena Piripkura, onde vivem Tamandua e Baita — dois remanescentes de um grupo quase todo dizimado por invasores — ocupa o quarto lugar no rankingi. As invasões à TI Piripkura aumentaram nos últimos dois anos, avançando até dez quilômetros para dentro do território, segundo Elias Bigio, ex-coordenador-geral de Índios Isolados da Funai.

Os piripkuras também correm o risco de perder o direito ao território por conta de uma portaria que foi renovada por apenas seis meses, o que não é suficiente para a proteção do território, como retratado na campanha Isolados ou Dizimados.

Tamandua e Baita são os dois último Piripkura, isolados na TI Piripkura - Bruno Jorge/Zeza Filmes/Divulgação - Bruno Jorge/Zeza Filmes/Divulgação
Tamandua e Baita são os dois último Piripkura, isolados na TI Piripkura
Imagem: Bruno Jorge/Zeza Filmes/Divulgação

TI Vale do Javari - 'Um contexto de genocídio'

No quinto lugar da listagem, o Vale do Javari também sofre com garimpeiros. Mas Beto Marubo, da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), afirma que a área também é ameaçada por pescadores e caçadores ilegais, que circulam próximos dos isolados e podem levar o vírus. "Se eles se contaminarem, vão morrer na aldeia. Então, quando a gente fala em genocídio, e o governo fala que é alarde demais, é nesse contexto."

Além de tentar evitar tragédias como essa, a ideia da criação da plataforma, segundo o membro do Opi Fabrício Amorim, era monitorar o avanço da pandemia e subsidiar estratégias para a proteção dos isolados — caso das barreiras sanitárias, que deveriam ser instaladas em 30 territórios com isolados. No entanto, mesmo em TIs com alerta vermelho, o governo não providenciou barreiras. Em algumas, os próprios indígenas assumiram essa função.

A Funai foi procurada, mas não respondeu às perguntas da reportagem.

* Colaboraram Edivan e Flay Guajajara; edição: Mariana Della Barba

Essa reportagem foi produzida com o apoio do Pulitzer Center em parceria com o Rainforest Journalism Fund/.