Venezuela vota em 'último referendo sobre Chávez'
Milhões de venezuelanos vão às urnas neste domingo em uma eleição presidencial que se converteu, como era previsto, em um referendo - póstumo e último - sobre os 14 anos da era Hugo Chávez.
Mesmo sem a presença física do líder da chamada revolução bolivariana, a devoção a ele foi objeto de bordões, gritos de guerra e material de campanha tanto quanto o nome do seu candidato que aparece entre as opções das 39 mil urnas eletrônicas mobilizadas neste domingo.
Ao longo de dez curtos dias de propaganda política, Chávez foi o eixo principal da campanha do seu herdeiro político, o presidente interino, Nicolás Maduro.
Voltou a sê-lo no sábado, quando Maduro compareceu a uma cerimônia em Caracas para celebrar o aniversário da volta de Chávez ao poder em abril de 2002, depois de um fracassado golpe de menos de 48 horas.
"Chávez vive", gritavam os militares que passavam diante de Maduro, no Quartel da Montanha, onde o corpo de Chávez repousa em seu caixão. "A luta segue", repetia o candidato.
Presença na ausência
A campanha do opositor Henrique Capriles, estrategicamente, evitou questionar radicalmente este legado, preferindo reconhecer alguns avanços no plano social e focalizando as suas críticas mais mordazes à pessoa de Maduro.
Mas chavistas como Yaraní Ramos, 36, acreditam piamente no slogan que reza que "Chávez traçou a rota, agora é Maduro (um ex-motorista de ônibus e sindicalista) ao volante".
"Meu sentimento é que Chávez continua estando aqui", disse Yaraní à BBC Brasil.
"Uma coisa que a oposição nunca entendeu foi a conexão espiritual e afetiva com a maioria da população. As mudanças e o amadurecimento que ele impulsionou com a população não voltam atrás", afirmou.
Para ela, "não se pode negar o amor e o respeito que Maduro professa por Chávez". "E isso é o que me dá confiança em votar por ele", diz.
Esse é um resumo da motivação que levará milhões de chavistas a dar seu voto de confiança em Maduro neste domingo.
Os resultados da disputa podem definir, nas palavras de Yaraní, "se a Venezuela é de fato socialista ou se era apenas chavista".
Mais além disso, para os chavistas, a escolha entre Maduro e Capriles é uma queda de braço entre "uma linha que quer beneficiar a maioria e outra que quer beneficiar a minoria", como opina a eleitora de Maduro.
'Apadrinhados'
Curiosamente, na visão da oposição, o problema é inverso: Capriles acusa os chavistas de formarem seu pequeno círculo de privilegiados e explorar o povo venezuelano para seus projetos de poder.
Durante sua campanha, o candidato opositor enfatizou que pretende extirpar do poder a classe de enchufados, ou apadrinhados, que parasitam no caótico e prolífico aparato estatal venezuelano.
"Estão paranoicos, porque o importante para eles não é o povo, é manter-se no poder", critica uma caprilista que não quer ter o nome revelado por temor de que suas posições políticas prejudiquem o relacionamento da empresa para a qual ela trabalha com o governo.
Essa foi uma preocupação recorrente entre opositores entrevistados pela BBC Brasil nos últimos dias. "Aqui a sociedade não está menos polarizada que antes. Existe mais medo", diz.
Funcionária do setor jurídico de uma grande empresa da cadeia alimentícia, ela discorre sobre a "coleira" que o governo pôs no setor privado após uma longa e ressentida greve patronal do fim de 2002, que causou sérios desabastecimentos no país e quase derrubou o governo de Chávez.
A resposta foi uma combinação de estatizações de centenas de empresas nos setores mais estratégicos da economia nacional - petróleo, minérios, alimentação, medicamentos, bancos - e controle estrito sobre preços, produção e até distribuição dos produtos.
Desabastecimento
Os empresários dizem que o resultado foi uma debilitação da produção nacional, o aprofundamento da dependência de importados - que não pode ser satisfeita devido à escassez de dólares na economia - e mais problemas de abastecimento.
"Para fazer as compras de casa, você agora precisa ir a dois, três supermercados, e isso em Caracas, porque o desabastecimento é pior no interior do país. Se você não chegar cedo, não compra carne", relata a eleitora opositora.
"E as pessoas pobres são as que mais sofrem, porque enfrentam horas, horas de fila para comprar alimentos."
A conversa é mantida em um restaurante na elegante região leste de Caracas. À saída, para exemplificar para esta reportagem, a opositora pergunta ao guardador de carros do restaurante.
"Senhor, diga-me, consegue encontrar farinha de milho branco (ingrediente básico da arepa, o "pão" venezuelano)?", pergunta. "Impossível", responde o guardador.
Ele diz que, embora a tal farinha custe 4 bolívares fortes (US$ 0,63 no câmbio oficial, US$ 0,18 no paralelo), só consegue comprar o produto - do qual até pouco tempo a Venezuela era auto-suficiente - nos camelôs, a um preço cinco vezes maior.
"Mas amanhã (este domingo) virá à salvação, se Deus quiser", afirma ele. "Amém", replica a caprilista.
"Para mim, estamos caminhando para um modelo de regime que fracassou em diversas outras partes do mundo", opina a opositora. "Se Maduro vencer e se radicalizar, vamos ver uma deterioração maior e esse país vai para o brejo."
Ressentimentos
Uma conversa com venezuelanos de diferentes matizes ideológicas revela a polarização que ainda existe no país como resultado de ressentimentos históricos.
O antagonismo desagrada venezuelanos como Rafael Bolívar, 32, jovem, empreendedor e esperançoso de um futuro menos polarizado. Ao volante de seu carro, ele tira uma carteira do Partido Socialista Operário Espanhol, ao qual é filiado.
"Me formei em Sociologia na UCV (Universidade Central da Venezuela), quanto mais esquerdista se pode ser?", pergunta, para então dizer que se desiludiu com Chávez e agora votará Capriles.
"Desde que Chávez chegou ao poder, a coisa mudou - a oposição aprendeu, agora é outra. Em 14 anos, as coisas mudam, todos mudamos", acredita.
Mas não é uma confiança compartilhada por todos os venezuelanos. Mesmo na casa da chavista Yaraní, o tema político precisa ser abordado com certa cautela.
Para poupar o casamento recente, ela e o marido, caprilista, evitam assuntos políticas às vésperas de umas eleições tão polarizadas.
"Escuto Maduro chamar Capriles de caprichosinho, burguesinho, oligarca, imperialista, ianque... parece que ele está atacando uma população que é quase a metade do eleitorado, seis milhões e meio de pessoas que votamos (na oposição) na eleição passada", justifica ele.
"A oposição acha difícil negociar com o chavismo, porque só quer negociar nos seus próprios termos e não respeita as opiniões da população chavista. Enquanto isso acontecer, vai haver polarização", rebate ela.
"Para alcançar uma união na Venezuela, apesar de ideias distintas, precisamos de cooperação dos meios de comunicação, dos líderes da oposição, de todas as pessoas que aqui estamos", defende.
Como parte de uma "terapia" particular, ambos procuram acompanhar o outro em eventos das campanhas de seus respectivos candidatos. Acham que podem contribuir com o seu "pequenino grão de areia" para um dia superar as rivalidades que ainda existem na sociedade.
"Nos custa muito, mas é um exercício de tolerância", brinca Yaraní.
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