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'Vai ficar para o resto da vida na cabeça', diz vítima de ofensas racistas que gravou vídeo e denunciou agressão

Leandro Antônio Eusdacio Xavier sofreu ataques verbais racistas de uma mulher na rua no fim de semana - Leandro Antônio Eusdacio Xavier
Leandro Antônio Eusdacio Xavier sofreu ataques verbais racistas de uma mulher na rua no fim de semana Imagem: Leandro Antônio Eusdacio Xavier

Juliana Gragnani

Da BBC News Brasil em Londres

17/09/2020 15h56

Leandro Antônio Eusdacio Xavier, 39, tem tido dificuldades para dormir.

Desde que foi vítima de um ataque racista no sábado (12), quando saiu para buscar o filho de 11 anos para passar o fim de semana com ele, coloca a cabeça no travesseiro e a cena volta.

"Ontem e essa noite dormi à base de remédios. Mesmo se eu quiser esquecer, não dá. Vai ficar para o resto da vida na minha cabeça", diz.

A cena que fica voltando à noite à sua cabeça começa assim: ele e o filho estavam caminhando no bairro do Jabaquara, na zona sul de São Paulo, em direção ao ponto de ônibus.

Quando foi atravessar a rua, uma mulher olhou para ele do outro lado da calçada, "balançando a cabeça, fazendo tipo: 'o que foi?'", conta ele. "Olhei para o outro lado para ver se ela estava fazendo alguma coisa com alguém. Nisso ela veio, e quando chegou perto, começou com as ofensas, me xingando", diz.

"Eu perguntei por que ela estava me xingando, se eu não tinha feito nada para ela."

Leandro então colocou o filho na calçada, pegou o celular e começou a gravar o que estava acontecendo. As próximas cenas estão registradas em um vídeo que circulou nas redes sociais depois que ele mandou para amigos, e que mais tarde serviu como base para uma denúncia que fez para a polícia. O vídeo é repleto de ofensas racistas.

Como ela não parava de xingá-lo, conta Leandro, ele decidiu parar de gravar. "Meu filho já presenciou demais", diz ter pensado, desligando o aparelho.

"Peguei o ônibus e fui embora. Fui conversando com ele [seu filho], falando que eu ia resolver a situação, para ele não esquentar a cabeça. Mas na hora minha vontade era de chorar, porque me senti um nada, parecia que eu tinha perdido o chão", diz ele, que conta ter segurado o choro para que seu filho não o visse chorando.

"Você vê seu filho vendo aquela situação sua... Por que está acontecendo aquilo ali? Por que aquela mulher teve aquela reação daquele jeito, sendo que eu não tinha feito nada para ela?"

"Me deu uma mágoa tão grande, me veio uma tristeza ver aquela mulher falando tudo aquilo para mim. Vem uma mágoa, alguma coisa dentro de mim, que eu não sei explicar. É coisa que eu nunca senti antes na minha vida, nunca", diz ele.

Leandro diz nunca ter passado por uma situação semelhante.

"Se eu sofri alguma discriminação antes, só se não tiver percebido", afirma.

"A gente vê acontecendo com outras pessoas, a gente fica triste. Eu sabia que tinha racismo no mundo inteiro, mas nunca tinha presenciado e nunca tinha sofrido", diz.

"O racismo acontece no mundo inteiro, algumas pessoas vão ter a sorte de filmar e ter provas, outras não vão ter."

"Hoje minha cabeça está totalmente diferente. Eu abracei a causa e vou até o final", afirma ele. "Que meu caso sirva de exemplo para todo mundo."

Na segunda-feira (14), foi para a delegacia fazer uma denúncia.

"Não tenho raiva dela, não quero que aconteça nada de mal contra ela. Pedi que Deus conforte ela, que ela não faça isso com mais ninguém. E não quero que ninguém faça nada de mal contra ela. Quero que sejam feitas as coisas diretamente na Justiça", diz.

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo diz que o caso foi registrado como injúria racial pelo 35º DP e é investigado pelo 97º DP, responsável pela área. A polícia identificou a autora do crime e realizou diligências em sua casa, mas ela não foi localizada.

Segundo a polícia, as investigações seguem para encontrá-la.

Nas redes sociais, moradores do Jabaquara comentam que a mulher é conhecida no bairro por agressões do tipo e tem sabidamente um transtorno psiquiátrico.

"Se tiver provado que ela tem algum problema, a família que interne ela ou fique com ela, porque uma pessoa que dê problema não pode ficar na rua ofendendo as pessoas", comenta Leandro.

'Ninguém está parado'

Nascido e criado pelos avós na zona sul de São Paulo, Leandro começou a trabalhar aos 13 anos.

Conta ter visto o pai só duas vezes na vida.

O avô era pedreiro; a avó, trabalhadora doméstica em uma casa na zona sul de São Paulo. O rapaz, por sua vez, exerceu diversas profissões na vida: conta já ter vendido limão no farol, foi carpinteiro, pintor, pedreiro.

Estudou até a oitava série — a última vez que tentou completar os estudos, conta, tinha 26 anos, mas não pode concluir porque viajava a trabalho.

"Eu tinha que trabalhar. Ficava 30 dias viajando e dois dias em casa. Fui para a Bahia, Londrina, Botucatu, Rio de Janeiro, Ribeirão Preto, Jundiaí, tudo como carpinteiro", lembra.

Leandro e sua esposa, que está grávida - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Leandro e sua esposa, que está grávida
Imagem: Arquivo Pessoal

Hoje, é auxiliar de serviços gerais em um prédio na Saúde, na zona sul de São Paulo, e se diz um "faz-tudo" - fica na portaria, faz manutenção, cuida da parte elétrica do prédio.

Acorda todos os dias às 5h10 para pegar dois ônibus de perto de Diadema (Grande São Paulo), onde mora, e chegar no trabalho às 8h. No seu tempo livre, gosta de samba, de tocar cavaquinho.

Pai de dois filhos (um de 13 e outro de 11 anos) e com outro a caminho, diz que o pior da situação vivida no fim de semana foi ter o filho mais novo presenciando a cena. "Isso é o que dói mais", lamenta.

Para os filhos e para os sobrinhos — Leandro é tio de 20 e tio avô de sete — ele disse querer ensinar que eles façam uma denúncia também caso algum dia sofram algo semelhante, e que nunca sejam racistas ou homofóbicos.

"Falei que isso não é um caso isolado, que isso acontece no mundo inteiro. Do mesmo jeito que eu tive a calma, tive paciência, que eles façam o mesmo também. Por mais que na hora você tenha raiva, mantenha calma. Se você sofrer algo como eu sofri, denuncie, mesmo se não tiver prova, vai lá denunciar. Se vocês virem alguém sofrendo, também vai lá denunciar", diz ele.

"Que vocês não tenham racismo nem homofobia com ninguém. Não maltrata ninguém para ninguém ser maltratado."

Acabar o racismo no Brasil, diz ele, "talvez nunca acabe, mas tem que mostrar que ninguém está parado, de boca calada, não". "Se acontecer algum [caso de] racismo, alguém vai denunciar ou alguém vai filmar e denunciar.