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Eleições nos EUA: as origens da estratégia de Trump de alegar fraude

Depois da eleição, apoiadores de Trump fazem protesto "Stop The Steal" (ou "Parem de roubar") em Atlanta - Getty Images
Depois da eleição, apoiadores de Trump fazem protesto 'Stop The Steal' (ou 'Parem de roubar') em Atlanta Imagem: Getty Images

Marianna Spring *

23/11/2020 12h29

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, já alegava "fraude" mesmo enquanto os votos ainda estavam sendo contados, no que foi o auge de uma estratégia que estava sendo elaborada há pelo menos alguns meses.

Nas primeiras horas de uma manhã gelada de novembro em Connecticut, Candy, de 49 anos, ficou na cama após um longo turno noturno. Ela imediatamente desbloqueou o telefone e começou a navegar em seu feed em rede social, como faz na maioria das noites.

Mas era diferente: era a noite da eleição. O resultado ainda estava em jogo. Candy rolou a tela, acompanhando as notícias da noite enquanto esperava que seu candidato favorito se manifestasse. Logo depois da 1h, ele fez. Trump escreveu que estavam tentando roubar as eleições:

Candy concordou. Ela estava frustrada e queria fazer algo. Foi quando uma de suas melhores amigas a convidou para se juntar a um grupo do Facebook chamado Stop the Steal (Parem com o Roubo), o que ela topou.

"Os democratas têm dito desde o início de toda essa história da covid que farão o que for preciso para tirar Trump de lá, e acho que eles conseguiram", disse ela mais tarde.

Candy estava esperando por isso. Há meses, alegações de "eleições fraudulentas" e "fraude eleitoral" apareceriam seu feed de Facebook.

E ela não é a única americana que foi exposta a desinformação eleitoral meses antes do dia da votação.

Tuítes e democracia

Pesquisa feita pela equipe de combate à desinformação da BBC revela que a desinformação sobre fraude eleitoral foi divulgada por contas influentes na mídia social repetidamente, durante meses.

E veio do alto. O presidente Trump começou a tuitar alegações de fraude já em abril.

Desde então e até a eleição, ele mencionou eleições fraudulentas ou fraude eleitoral mais de 70 vezes. Como nesta mensagem publicada em junho:

E nesta em agosto:

Não é um tema novo. Trump fez alegações de fraude eleitoral em 2016, depois de uma eleição que ganhou. Mas, desta vez, as evidências sugerem que muito mais pessoas têm visto alegações infundadas em todos os feeds de mídia social por semanas.

Candy é apenas uma dessas pessoas. Centenas de milhares de perfis entraram em grandes grupos do Facebook com o título Stop the Steal.

Um dos vários grupos que surgiram nas redes sociais após as eleições nos Estados Unidos - BBC - BBC
Um dos vários grupos que surgiram nas redes sociais após as eleições nos Estados Unidos
Imagem: BBC

Nossa apuração revelou que contas da direita com muita influência foram fundamentais para amplificar essas alegações. E foram frequentemente retuitadas pelo presidente Trump. Isso inclui uma série de figuras com grandes seguidores que passaram a se envolver em um movimento de protesto centrado em torno da ideia infundada de uma eleição "fraudada".

De onde veio #StoptheSteal?

Na noite da eleição, a hashtag #StoptheSteal surgiu no Twitter depois que o primeiro de muitos vídeos enganosos sobre fraude eleitoral se tornou viral.

O vídeo mostrou um observador de pesquisas sendo impedido de entrar em uma seção eleitoral da Filadélfia. Tem quase dois milhões de visualizações no Twitter e foi compartilhado por várias contas pró-Trump.

Investigamos o vídeo logo após sua postagem.

O homem que aparece nele foi convidado a esperar do lado de fora por funcionários, com uma mulher dizendo a ele que seu certificado de observação eleitoral não era válido naquela seção de votação em particular.

O vídeo era autêntico e, ao que parece, a mulher estava errada. Houve confusão sobre as regras. Antigamente, os observadores das pesquisas só tinham permissão para entrar em uma estação específica na Filadélfia, mas agora podem visitar vários locais na cidade.

Posteriormente, a situação foi esclarecida e o homem foi autorizado a entrar na estação e recebeu um pedido de desculpas. Nada disso foi refletido no vídeo, é claro. E a hashtag já havia se tornado viral.

O slogan Stop the Steal foi então usado por aqueles que organizam grandes grupos no Facebook que, desde a noite das eleições, acumularam mais de um milhão de membros.

Vários desses grupos foram removidos depois que usuários postaram ameaças de violência e chamados por "guerra civil".

Eles se tornaram foco de propagação de mais vídeos enganosos e falsas alegações (semelhantes ao incidente na Filadélfia) que inundaram os feeds de mídia social de pessoas como Candy.

Cédulas queimadas e eleitores mortos

"Eles diziam que começamos o grupo para tentar iniciar tumultos em diferentes lugares do país, o que não era verdade", conta Candy, cada vez mais irritada com o fechamento do grupo Stop the Steal no Facebook.

Candy, junto com a maioria dos membros desses grupos, não está defendendo violência. Ela diz que está simplesmente seguindo o que pensa ser a verdade.

"Todo mundo estava simplesmente espalhando as fraudes que estavam vendo na eleição", diz ela.

Candy em uma foto com a imagem de Donald Trump em papelão - Facebook - Facebook
Candy em uma foto com a imagem de Donald Trump em papelão
Imagem: Facebook

Ela admite para mim que passa muito tempo no Facebook - e embora diga que não confia muito no que vê na rede social, ao mesmo tempo tem sido essa a sua principal fonte de informação sobre as eleições.

Candy mencionou uma série de alegações desmentidas ou sem evidências: que certos tipos de canetas foram entregues para invalidar as cédulas, ou que as cédulas estavam sendo descartadas ou rasgadas.

Investigamos dezenas de alegações que circulavam online que se revelaram falsas ou impossíveis de provar. Um exemplo: um homem disse que jogou fora as cédulas de Trump em Wisconsin em uma postagem que se tornou viral no Facebook. Mas acontece que ele mora nos subúrbios de Detroit, em um estado totalmente diferente, Michigan.

O homem, um açougueiro de 32 anos, revelou sua verdadeira identidade à BBC News e insistiu que não tinha nada a ver com a contagem de votos - em Wisconsin ou em qualquer outro lugar. A postagem, disse ele, era simplesmente uma piada.

Não há evidência concreta de votos - para qualquer candidato - sendo jogados fora ou rasgados.

Pessoas mortas não votam

As alegações continuam chegando.

"Eu vi um vídeo que alguém postou em que um homem descobriu que sua esposa votou este ano", disse Candy, "mas ela morreu em 2017."

Também examinamos essas alegações. Muitas dessas acusações sobre eleitores mortos foram, posteriormente, identificadas como informações falsas ou casos de registros incorretos, como explica esta reportagem. Encontramos um caso em que uma pessoa viva apresentou acidentalmente uma cédula de ausente que foi enviada a um pai falecido.

Existem outros casos em que os eleitores em questão morreram antes da eleição. As autoridades em Michigan confirmaram que, quando for esse o caso, o voto será rejeitado.

Conspirações

Por trás (e ocasionalmente em primeiro plano) desta eleição está uma série de teorias de conspiração cada vez mais populares que encorajam a ideia de que tudo é fraudado, suspeito e diferente do que parece ser.

O professor Whitney Phillips, da Syracuse University, diz que a teoria da conspiração QAnon pode explicar em parte por que esses rumores sobre a votação se espalharam como um incêndio. Esta é a crença infundada de que o presidente Trump está travando uma guerra secreta contra os pedófilos satânicos.

Bandeira do QAnon tem aparecido em protestos do Stop the Steal - Getty Images - Getty Images
Bandeira do QAnon tem aparecido em protestos do Stop the Steal
Imagem: Getty Images

"Jornalistas e comentaristas se concentraram nos elementos satânicos da teoria", diz ela. "Mas enterrada dentro desse discurso estava uma narrativa de 'estado profundo' mais grave", que fez com que os apoiadores de Trump questionassem e duvidassem de quase tudo.

Na avaliação dela, antes mesmo da primeira votação ser feita, havia "migalhas de pão e toda uma estrutura narrativa" de que os democratas iriam roubar a eleição.

O maior medo dela não é a violência nas ruas. Ela não acha que pessoas como Candy, que se juntam aos grupos Stop the Steal, vão se revoltar por causa de notícias falsas online.

Em vez disso, Whitney Philips e outros especialistas com quem falo se preocupam com a erosão lenta e gradual da fé das pessoas na democracia.

* Com contribuição de Olga Robinson