Tempo de celebrar os aniversários da "não história"

Noam Chomsky

Noam Chomsky

  • JFK Presidential Library/The White House/Robert Knudsen/Handout/Reuters

    Ex-presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy

    Ex-presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy

George Orwell cunhou o útil termo "não gente" para criaturas a quem é negada a condição de pessoa porque não acatam a doutrina do Estado. Podemos acrescentar o termo "não história" para nos referirmos ao destino das não pessoas, expurgadas da história por motivos semelhantes.não história das não pessoas é esclarecida pelo destino dos aniversários. Os importantes geralmente são comemorados com a devida solenidade, quando apropriado: por exemplo, Pearl Harbor. Alguns não o são, e podemos aprender muito sobre nós mesmos ao desenredá-los da não história.

Neste momento estamos deixando de comemorar um acontecimento de grande importância humana: o 50º aniversário da decisão do presidente Kennedy de lançar a invasão direta ao Vietnã do Sul, que logo se tornaria o mais extremo crime de agressão desde a Segunda Guerra Mundial.

Kennedy ordenou que a Força Aérea americana bombardeasse o Vietnã do Sul (em fevereiro de 1962 centenas de missões já tinham sido enviadas); autorizou a guerra química para destruir plantações, de modo a subjugar pela fome a população rebelde; e implementou programas que afinal levaram milhões de aldeões para favelas urbanas e virtuais campos de concentração, ou "Aldeias Estratégicas". Lá os aldeões seriam "protegidos" das guerrilhas indígenas que, como o governo americano sabia, eles apoiavam de boa vontade.
As iniciativas oficiais para justificar os ataques eram parcas e, na maioria, fantasias.

Foi típico o discurso desapaixonado do presidente à Associação Americana de Editores de Jornais em 27 de abril de 1961, quando ele advertiu que "temos em todo o mundo a oposição de uma conspiração monolítica e impiedosa, que conta principalmente com meios disfarçados para expandir sua esfera de influência". Na ONU em 25 de setembro de 1961, Kennedy disse que, se essa conspiração atingisse seus fins no Laos e no Vietnã, "os portões estarão amplamente abertos".

As consequências em curto prazo foram relatadas pelo altamente respeitado especialista em Indochina e historiador militar Bernard Fall - que não é uma pomba da paz, mas um dos que se importava com a população dos países atormentados.

No início de 1965 ele estimou que cerca de 66 mil sul-vietnamitas foram mortos entre 1957 e 1961; e outros 89 mil entre 1961 e abril de 1965, na maioria vítimas do regime cliente dos EUA ou "o peso esmagador dos blindados americanos, do napalm, dos bombardeiros a jato e finalmente dos gases vomitórios".

As decisões eram mantidas nas sombras, como são as chocantes consequências que persistem. Para mencionar apenas uma ilustração, "Scorched Earth" [Terra arrasada], de Fred Wilcox, o primeiro estudo sério do horrível e contínuo impacto da guerra química sobre os vietnamitas, foi lançado alguns meses atrás - e é provável que se junte a outras obras de não história. O núcleo da história é o que aconteceu. O núcleo da não história é "desaparecer" o que aconteceu.

Em 1967, a oposição aos crimes no Vietnã do Sul havia atingido uma escala substancial. Centenas de milhares de soldados americanos estavam arrasando o Vietnã do Sul, e áreas altamente populosas eram submetidas a intensos bombardeios. A invasão havia se espalhado para o resto da Indochina.

As consequências tinham se tornado tão horrendas que Bernard Fall prevê que "o Vietnã como entidade cultural e histórica... está ameaçado de extinção... (enquanto) ... a zona rural literalmente morre sob os golpes da maior máquina militar já empregada sobre uma área desse tamanho".

Quando a guerra terminou, oito anos devastadores depois, a corrente dominante da opinião estava dividida entre os que a chamavam de "causa nobre" que poderia ter sido vencida com mais dedicação; e o extremo oposto, os críticos, para quem foi "um erro" que se mostrou custoso demais.

Ainda estava por vir o bombardeio da remota sociedade agrícola do norte do Laos, com tal magnitude que as vítimas viveram em cavernas durante anos para tentar sobreviver; e pouco depois o bombardeio do Camboja rural, ultrapassando o nível de todo o bombardeio aliado no teatro do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial.

Em 1970 o assessor de segurança nacional dos EUA, Henry Kissinger, havia ordenado "uma campanha maciça de bombardeio no Camboja. Qualquer coisa que voe sobre qualquer coisa que se mova" - um chamado ao genocídio de um tipo raramente encontrado nos registros.
Laos e Camboja foram "guerras secretas" na medida em que as reportagens eram escassas e os fatos ainda são pouco conhecidos do público em geral, ou mesmo das elites educadas, que entretanto,  podem recitar de cor todos os crimes reais ou alegados dos inimigos oficiais.

Mais um capítulo nos transbordantes anais da não história. Em três anos poderemos - ou não - comemorar mais um acontecimento de grande relevância contemporânea: o 900º aniversário da Magna Carta.

Esse documento é a fundação do que a historiadora Margaret E. McGuiness, referindo-se aos julgamentos de Nuremberg, saudou como "um tipo particularmente americano de legalismo: punição apenas para aqueles que puderem ser provados culpados através de um julgamento justo, com uma panóplia de proteções processuais".

A Grande Carta declara que "nenhum homem livre" seja privado de direitos "exceto pelo julgamento legal de seus pares e pela lei da terra". Os princípios foram mais tarde ampliados para se aplicar aos homens em geral. Eles cruzaram o Atlântico e entraram na Constituição americana e na Carta de Direitos, que declarou que nenhuma "pessoa" pode ser privada de direitos sem o devido processo e um julgamento rápido.
Os fundadores, é claro, não pretendiam que o termo "pessoa" fosse aplicado a todas as pessoas. Os indígenas americanos não eram pessoas. Nem os escravos. As mulheres quase não eram pessoas. Entretanto, vamos manter a ideia central de presunção de inocência, que foi atirada ao esquecimento da não história.

Um passo além para minar os princípios da Magna Carta foi dado quando o presidente Obama assinou o Decreto Nacional de Autorização de Defesa, que codifica a prática de Bush-Obama de detenção indefinida sem julgamento, sob custódia militar.
Esse tratamento é hoje obrigatório no caso dos acusados de ajudar forças inimigas durante a "guerra ao terror", ou opcional se os acusados forem cidadãos americanos.

O âmbito é ilustrado pelo primeiro caso de Guantánamo a ser julgado sob o presidente Obama: o de Omar Khadr, um ex-menino soldado acusado do crime hediondo de tentar defender sua aldeia no Afeganistão, quando foi atacada por forças dos EUA. Capturado aos 15 anos, Khadr ficou preso durante oito anos em Bagram e Guantánamo, depois foi levado a um tribunal militar em outubro de 2010, onde lhe foi dada a opção de se declarar não culpado e ficar em Guantánamo para sempre, ou declarar-se culpado e servir apenas mais oito anos. Khadr escolheu a segunda.

Muitos outros exemplos esclarecem o conceito de "terrorista". Um é Nelson Mandela, que só foi retirado da lista de terroristas em 2008. Outro foi Saddam Hussein. Em 1982 o Iraque foi removido da lista de países que apoiam o terrorismo de modo que o governo Reagan pôde dar ajuda a Hussein depois que ele invadiu o Irã.

A acusação é caprichosa, sem revisão ou recurso, e comumente reflete objetivos políticos - no caso de Mandela, justificar o apoio do presidente Reagan aos crimes do Estado do apartheid defendendo-se contra um dos "grupos terroristas mais notórios" do mundo: o Congresso Nacional Africano de Mandela.Tudo isso fica melhor consignado ao fator não história.


 

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Noam Chomsky

Noam Chomsky é um dos mais importantes linguistas do século 20 e escreve sobre questões internacionais.

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