Ambiente

Com desrespeito de "regras fundamentais", terríveis legados serão deixados às próximas gerações

Noam Chomsky

Noam Chomsky

  • Vanderlei Almeida/AFP

    22.jun.2012 - Manifestante protesta durante último dia da Rio+20, Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável

    22.jun.2012 - Manifestante protesta durante último dia da Rio+20, Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável

Acontecimentos recentes marcam uma trajetória ameaçadora, em forma suficientemente clara que talvez valha a pena olhar para o futuro por algumas gerações, até o milésimo aniversário de um dos grandes marco no estabelecimento dos direitos civis e humanos: a criação da Magna Carta, o documento das liberdades inglesas que foi imposto ao rei João em 1215.

O que fizermos hoje, ou deixarmos de fazer, determinará que tipo de mundo comemorará o aniversário. Não é uma perspectiva atraente - e em boa parte porque a Carta Magna está sendo destroçada diante de nossos olhos.

A primeira edição acadêmica da Carta Magna foi publicada em 1759 pelo jurista William Blackstone, cuja obra foi uma das fontes da legislação constitucional dos EUA. Intitulava-se "The Great Charter and the Charter of the Forest" [A grande carta e a carta da floresta], seguindo as práticas anteriores. Ambos os documentos são altamente significativas até hoje em dia.

A primeira, a Carta das Liberdades, é geralmente reconhecida como a pedra angular dos direitos fundamentais dos povos de fala inglesa - ou, como expressou Winston Churchill, de forma mais ampla, "a Carta de qualquer homem que respeite a si mesmo em qualquer tempo e qualquer terra".

Em 1679, a Carta foi enriquecida pela lei de Habeas Corpus, oficialmente chamada "uma lei para melhor garantir a liberdade do sujeito e prevenir o encarceramento além dos mares". A versão moderna, mais severa, é chamada de "rendição" – que estipula os fins de tortura.

Junto com boa parte da legislação inglesa, a lei foi incorporada à Constituição dos EUA, a qual afirma que "o auto de habeas corpus não será suspenso", salvo em caso de rebelião ou invasão. Em 1961, a Suprema Corte dos EUA ditou que os direitos garantidos por essa lei foram "considerados pelos Fundadores como a mais importante salvaguarda da liberdade".

Mais especificamente, a Constituição garante que "nenhuma pessoa (será) privada de vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo da lei e um julgamento rápido e público" por seus pares.

O Departamento de Justiça recentemente explicou que essas garantias foram satisfeitas por deliberações internas no ramo executivo, como informaram Jo Becker e Scott Shane ao "The New York Times" em 20 de maio. Barack Obama, o advogado constitucional da Casa Branca, esteve de acordo. O rei João teria assentido com satisfação.

O princípio subjacente de "presunção de inocência" também recebeu uma interpretação original. No cálculo da lista de execução de "terroristas do presidente", todo homem em idade militar em uma zona de ataque "é visto, de fato, como combatente", a menos que "haja conhecimento póstumo que prove sua inocência", explicaram Becker e Shane. Essa determinação de inocência posterior ao assassinato é suficiente, atualmente, para manter esse princípio sagrado.

Isto é apenas uma amostra do desmantelamento da "Carta de todo homem que respeite a si mesmo".

A Carta da Floresta que a acompanha talvez seja mais pertinente hoje em dia. Exigia proteção do povo baixo ou vulgo por parte do poder externo. Esse vulgo era a fonte de manutenção para a população em geral - seu combustível, seus alimentos, seus materiais de construção. A Floresta não era a terra plana. Era terra cuidadosamente nutrida, mantida em comum, com riquezas disponíveis para todos, preservada para gerações futuras.

Para o século 17, a Carta da Floresta havia sido vítima da economia de matérias-primas, da prática do capitalismo e da moralidade. Não mais protegida por cooperativas e por seu uso, os comuns estavam restritos ao que não podia ser privatizado - categoria que continua se reduzindo diante de nossos olhos.

No mês passado, o Banco Mundial decretou que a multinacional de mineração Pacific Rim pode proceder em seu caso contra El Salvador por tentar preservar terras e matérias-primas e comunidades contra a altamente destrutiva mina de ouro. A proteção ambiental privaria a empresa de ganhos futuros, um crime segundo as regras do regime de direitos de investidores mal chamado de "livre comércio".

Este é só um exemplo das lutas que se travam hoje em boa parte do mundo, algumas com extrema violência, como no Congo, rico em recursos, onde milhões de seres humanos foram assassinados em anos recentes para assegurar uma ampla reserva de minerais para telefones celulares e outros usos, e, é claro, amplas utilidades.

O desmantelamento da Carta da Floresta trouxe consigo uma revisão radical de como os comuns são concebidos, captada em 1968 pela influente tese de Garret Hardin, que afirma que "a liberdade nos comuns causa ruína a todos nós", a famosa "tragédia dos comuns". O que não é de propriedade privada será destruído pela avareza individualista.

A doutrina não carece de desafios. Elinor Olstrom ganhou o Prêmio Nobel Memorial em Ciências Econômicas em 2009 por seu trabalho para mostrar a superioridade dos comuns administrados por seus usuários.

Mas a doutrina tem força se nós aceitarmos o princípio implícito de que os seres humanos são cegamente impulsionados pelo que os trabalhadores americanos, na aurora da Revolução Industrial, chamaram de "o novo espírito da era, obter riqueza esquecendo-se de tudo menos de si mesmo" -, uma doutrina que eles condenaram amargamente como destrutiva, um ataque contra a própria natureza do povo.

Esforços enormes foram dedicados desde então a inculcar "o novo espírito da era". Grandes indústrias dedicadas ao que o economista político Thorstein Veblem chamou de "fabricar desejos" - dirigir as pessoas para "as coisas superficiais" da vida, como o "consumismo de modas", nas palavras de Paul Nystrom, professor de marketing na Universidade Columbia.

Dessa forma, as pessoas podem ser atomizadas, dedicadas somente à busca de ganhos pessoais e afastadas de esforços perigosos como pensar por sua conta, unidas, e desafiar a autoridade.

É desnecessário pensar nos perigos extremos representados por um elemento central da destruição dos comuns: a dependência em combustíveis fósseis, que representa um desastre global. Podem-se discutir os detalhes, mas há poucas dúvidas sérias de que os problemas são demasiado reais e que na medida em que adiarmos sua solução mais terrível será o legado que deixaremos para as próximas gerações. A recente conferência Rio+20 é o esforço mais recente. Suas aspirações eram pequenas, e seu resultado foi irrisório.

Na liderança do combate a esta crise, ao largo do mundo, encontram-se as comunidades indígenas. A posição mais firme foi tomada pelo país que elas governam, a Bolívia, o país mais pobre da América do Sul e, durante séculos, vítima da destruição de seus ricos recursos pelo Ocidente.

Depois do ignominioso colapso da Cúpula da Mudança Climática global em Copenhague em 2000, a Bolívia organizou uma Cúpula de Povos com 35 mil participantes de 140 países. A cúpula fez um apelo para a severa redução das emissões e uma Declaração de Direitos da Mãe Terra. Essa é uma demanda chave das comunidades indígenas de todo o mundo.

A demanda é ridicularizada pelos ocidentais sofisticados, mas a menos que possamos adquirir algo da sensibilidade das comunidades indígenas é muito provável que elas riam por último - um riso de amargo desespero.

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Noam Chomsky

Noam Chomsky é um dos mais importantes linguistas do século 20 e escreve sobre questões internacionais.

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