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Tatuando pulmões com fumaça de florestas e canaviais

"Estamos todos fumando florestas, pastos e canaviais": assim o patologista Paulo Saldiva resume o efeito para a saúde humana dos milhões de focos de queimada que enfumaçam a maior parte do Brasil entre junho e outubro. O paralelo não é só uma frase de efeito. É a síntese de um lote de artigos científicos publicados nas mais respeitadas revistas de ciência do mundo, como Lancet e Nature. "O cigarro também é feito de um vegetal", compara.

Saldiva sabe do que fala. Há três décadas ele é professor titular de patologia da Universidade de São Paulo. Dissecou milhares de cobaias e pulmões em buscas de pistas, como um detetive. E fez descobertas fundamentais sobre como a fumaça agrava não apenas doenças respiratórias, mas também doenças cardiovasculares, câncer e até diabetes.

A fumaça é uma assassina sorrateira. Ao agravar doenças, abrevia vidas. Um dos estudos de Saldiva estimou uma sobremortalidade de mais de 130 mil pessoas no Brasil entre 2000 e 2016 apenas por causa da fumaça das queimadas. Mortes que seriam evitáveis se as vítimas não tivessem aspirado a fuligem dos incêndios. As vítimas são principalmente pessoas com mais de 60 anos e crianças até cinco anos, além de quem sofre de asma, bronquite e outras doenças crônicas do aparelho respiratório.

A fumaça dos incêndios florestais não prejudica a saúde apenas devido aos gases tóxicos que carrega. As partículas mais finas em suspensão na pluma que viaja pela atmosfera entram nos pulmões de pessoas que moram perto ou, dependendo dos ventos, a milhares de quilômetros de onde o fogo consumiu a vegetação. Entram fundo e, nas palavras de Saldiva, "tatuam os pulmões" das pessoas e animais. O efeito dessa mancha é cumulativo e, se a dose for muito alta, a tatuagem é indelével. Fica lá para sempre, inflamando os tecidos e abalando a saúde do organismo.

A fumaça proveniente das queimadas é particularmente insidiosa devido a um componente específico. PM2.5 são partículas finas suspensas no ar com diâmetro de até 2,5 micrômetros. De tão pequenas, penetram profundamente nos pulmões e até na corrente sanguínea. O PM2.5 proveniente de queimadas é mais tóxico e tem um impacto maior na mortalidade por doenças respiratórias do que o PM2.5 de outras fontes, como o tráfego urbano.

As mortes atribuíveis ao PM2.5 de queimadas entre 2000 e 2016 incluíram 32.961 mortes por causas cardiovasculares e 33.807 mortes por causas respiratórias. O custo humano é também um custo financeiro mensurável - pelas despesas para o sistema de saúde, pela incapacitação dos doentes e pelos anos de vida útil perdidos pelas vítimas fatais. O mesmo estudo estimou as perdas em US$ 5 bilhões por ano, ou US$ 81 bilhões em 16 anos. De lá para cá, a conta macabra só cresceu.

Sobre as centenas de queimadas que escureceram os céus e envenenaram o ar da Grande Matão em meados de agostos, Saldiva diz que teremos uma surpresa muito desagradável daqui a algum tempo, quando os efeitos puderem se medidos estatisticamente. A concentração de incêndios em canaviais, campos e matas num período de poucos dias e numa área circunscrita do interior de São Paulo servirá como experimento natural - e macabro.

Cada aumento de 10 µg/m³ na concentração de PM2.5 relacionado a queimadas está associado a um aumento de 3,1% na mortalidade geral, 2,6% na mortalidade cardiovascular e 7,7% na mortalidade respiratória, considerando um período de exposição de 14 dias. Em alguns anos, esse efeito poderá ser medido, por exemplo, em Ribeirão Preto e arredores, uma das áreas mais afetadas pelas queimadas de agosto.

Lá, a vegetação extremamente ressequida pela estiagem prolongada entrou em combustão sob condições climáticas excepcionalmente favoráveis à expansão do fogo. O vento que veio anunciando a frente fria provocou rajadas fortes que espalharam os focos originais e os multiplicaram pela região. Mas toda combustão requer um fator de ignição. Às vezes, esse fator é criminoso.

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A combustão é uma reação química entre um combustível e um oxidante (geralmente o oxigênio do ar) que libera energia na forma de calor e luz. Para a combustão começar, é necessária uma fonte de calor que eleve a temperatura do combustível ao seu ponto de ignição. O fator de ignição pode ser uma chama, uma faísca, ou outra forma de calor suficiente.

Em 95% das vezes, esse fator é o homem. Ele provoca a ignição intencionalmente, para "limpar" uma área, queimar lixo ou, mais raro, cometer um crime. Essa última hipótese é a mais aceita pela polícia e pelos ocupantes das áreas queimadas em São Paulo.

Algumas das pessoas presas próximas das áreas incendiadas disseram ter sido pagas para atear fogo no canavial. Pagas pelo crime organizado, pelo PCC. A motivação, investigada pela Polícia Civil, é uma eventual represália contra as recentes operações policiais contra a máfia dos combustíveis em São Paulo.

Algumas das maiores usinas de açúcar e etano do Brasil perderam 3,5 milhões de toneladas de cana nos incêndios. A perda foi tamanha que aumentou a cotação do preço internacional do açúcar.

Nem toda a experiência e nem as frotas de caminhões tanques das usinas foram suficientes para controlar o fogo. Em geral, umas ajudam as outras e todas retribuem o favor quando há queimadas. Dessa vez não deu porque todas tinham que apagar vários pontos de queimada simultâneos em seus próprios canaviais, algo que nunca tinha acontecido antes. Daí a suspeita de ação criminosa.

A certeza entre cientistas e usineiros é que a crise climática cria situações perfeitas para tragédias anunciadas e, por vezes, criminosas de proporções jamais vistas. Os meios para combater e evitar queimadas já não são mais suficientes. As políticas e o orçamento público precisam sofrer um upgrade para ficar à altura dos novos desafios da emergência climática.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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