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No carnaval da Democracia, a Sapucaí traz outras histórias do Brasil

Mapa região nordeste do Brasil - Luisrftc/Getty Images
Mapa região nordeste do Brasil Imagem: Luisrftc/Getty Images

Volgane Carvalho é Secretário-Geral da ABRADEP, mestre em Direito pela PUCRS e doutorando em Políticas Públicas pela UFPI

Colunista do UOL

01/03/2023 04h00

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O Carnaval de 2023 foi marcado pelas referências sutis, explícitas, acidentais e voluntárias à democracia e seus consectários lógicos, como a própria festa de Momo em certa medida é. Essas lembranças vieram das mais variadas formas, através da fala de artistas, da irreverência das fantasias, de carros alegóricos e na letra das músicas.

Contudo, enxergo uma síntese desse clima no carnaval da Beija Flor, que rasgou a fantasia e mostrou em seu enredo, no samba e, principalmente no desfile, um olhar diferente para os acontecimentos históricos relacionados com a independência do Brasil. Na Marquês de Sapucaí brilharam novos personagens, os excluídos da historiografia oficial que fizeram do 2 de julho a data magna da Bahia.

A narrativa nilopolitana me remeteu imediatamente a uma importante efeméride por muitos ignorada: o bicentenário da Batalha do Jenipapo. Esse foi o maior, talvez o único, combate bélico da história do Piauí e se desenrolou ao longo do dia 13 de março de 1823 às margens do Rio Jenipapo em Campo Maior.

Hoje as referências mais visíveis desse evento são um enorme monumento de concreto que se destaca em meio ao mar de carnaúbas, o pórtico que demarca o "Berço de Heróis", a data eternizada na bandeira piauiense e um verso do Hino piauiense. Muito mais comuns são as referências que pretendem diminuir o evento e sua importância para a história nacional, pois a narrativa sobre a independência privilegia aquilo que ocorreu no Centro-Sul. Ora, se o 2 de julho é ignorado, imaginem uma rusga ocorrida no interior do Piauí.

O que muitos ignoram é que o Piauhy era um província um pouco diferente das demais. Em primeiro lugar, erámos muito ricos, já que estávamos entre os maiores produtores de carne e gado do país. Em segundo lugar, tínhamos uma estrutura social diferente, pois os escravizados não eram a nossa maior força de trabalho.

O vaqueiro negro, indígena, mestiço e branco era o protagonista dos campos e recebia uma remuneração pelo sistema da sorte, ou seja, a cada quatro bezerros nascidos um lhe pertencia, o que lhe dava uma condição de vida bastante digna. Além disso, eram livres, dada a incompatibilidade do processo de criação extensiva do gado com a privação da liberdade.

Isso nos leva a um terceiro fato, não erámos uma terra de miseráveis. Ao inverso, mesmo sendo eminentemente rurícola, havia uma estratificação social complexa com diferentes níveis patrimoniais na sociedade.

Um elemento, entretanto, era comum com o restante do país: os abusos perpetrados pela pequena elite de origem portuguesa. A Batalha do Jenipapo ocorreu como uma tentativa de expulsar os portugueses da província, mesmo motor do movimento baiano, pois havia, entre eles, o desejo de que o Nordeste permanecesse como colônia.

Nesse intento, vaqueiros, pequenos comerciantes, produtores rurais, indígenas e escravizados se uniram com suas garruchas, facas, facões e pedras e atacaram as tropas do Major Fidié, um dos mais respeitados militares portugueses, em sua passagem por Campo Maior.

A bem estruturada tropa portuguesa massacrou os locais. Alguns relatos apontam para a morte de 100 portugueses e 400 piauienses, maranhenses e cearenses, bem como a prisão de mais de 500 pessoas. A vitória moral ficou com os brasileiros, pois Fidié, depois de enterrar seus mortos, recuou com sua força para o Maranhão e lá foi preso e expulso para Lisboa.

Esfarrapados perdem uma batalha no meio sertão, mas foi o bravo militar lusitano que retornou à Portugal escorraçado. Creio que não existem muitas dúvidas acerca de quem foram os verdadeiros vitoriosos e sobre o que podemos chamar de vitória nesse caso.

A historiografia dos excluídos parece que não vai seguir escondida. No bicentenário de sua independência os brasileiros precisam e merecem conhecer e se identificar com outros heróis nacionais. Vale reconhecer o democrático heroísmo do cotidiano, esse sim capaz de alterar vidas para melhor.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL