Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A política brasileira e a violência simbólica de gênero
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Imaginemos a seguinte situação: há um debate em algum plenário do país, de alguma casa legislativa (municipal, estadual ou federal, não importa), e se pronuncia uma mulher, defendendo pautas que podem contrariar padrões predominantes tanto na política quanto na sociedade brasileira (não citarei nenhum tema em específico para manter este exercício o mais neutro possível).
Logo em seguida, um homem profere um discurso que se opõe ao dito pela mulher parlamentar. O natural seria combater as ideias com argumentos, no entanto, o homem prefere atacar a pessoa da mulher parlamentar, chamando-a de adjetivos que comumente são usados, como "burra", de que "não entende o que está sendo falado", ou "você está desequilibrada para dizer algo assim". Após este embate, a mulher é responsabilizada pelos seus pares por ter provocado o episódio.
Parece exagero, mas não é. Essa situação "fictícia" retrata o que se tem naturalizado no Brasil durante décadas da presença de mulheres em espaços de poder. A violência simbólica que se extrai dessa situação hipotética e de tantas reais demonstra cabalmente que uma mulher está sempre exposta ao maltrato de homens que as julgam inferiores e que são fruto de uma sociedade baseada no estereótipo de gênero.
A Lei Modelo Interamericana para Prevenir Sancionar e Erradicar a Violência Contra as Mulheres na Vida Política traz a definição para violência política de gênero como "qualquer ação, conduta ou omissão, realizada de forma direta ou através de terceiros que, baseadas no seu gênero, causem dano ou sofrimento a uma ou a várias mulheres, e que tenha como propósito ou resultado depreciar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício dos seus direitos políticos."[1] (tradução livre).
Neste conceito está a ideia de que esse tipo de violência possui um impacto diferenciado nas mulheres. Palavras ditas podem não ter significado violento, mas o contexto aqui importa, como o tom de voz e a postura do homem parlamentar que as proferiu, dirigidas exclusivamente à mulher, também parlamentar. Estas manifestações podem vir com o intuito de inferiorizar a mulher, colocá-la "no seu lugar", tratá-la sem o respeito que o mesmo homem parlamentar confere aos seus pares também homens.
Após situações de violência política simbólica, muitas mulheres parlamentares relatam medo de passar novamente pela experiência, e não é à toa. Segundo levantamento feito pelo Instituto Alziras, 58% das prefeitas no Brasil afirmam já terem sofrido assédio ou violência política pelo fato de ser mulher. Além disso, 1 em cada 2 prefeitas não registraram boletins de ocorrência e, dentre elas, 40% não acredita na eficácia da apuração de denúncias sobre esse tipo de violência. Por fim, 50% das que denunciaram consideram que os casos não tiveram a devida apuração e responsabilização dos agressores.[2]
Segundo o Relatório 2020-2021 do Observatório de Violência Política Contra a Mulher, as formas não-físicas de violência política, principalmente a simbólica e a psicológica, passam por uma espécie de naturalização social ou tolerância devido à cultura patriarcal, o que torna difícil o seu reconhecimento. Além disso, são experimentadas de maneiras distintas por cada vítima, influenciadas pelos contextos culturais e sociais nos quais elas estão inseridas.[3]
Nesse ponto, deve-se ter em mente que, muitas vezes, as condutas violentas são tratadas como mero "custo político" que a mulher precisa pagar caso queira continuar na política, descontextualizando a realidade desigual em que operam. Isso ocorre, por exemplo, quando da negação ou da interrupção do direito de fala nos parlamentos e da negação da autoridade de mulheres, o que pode ser operado por colegas ou subordinados. Aqui é visualizada a busca em coagir, menosprezar ou causar constrangimento à mulher, com o intuito de apontar um valor político menor na sua atuação e manter a ordem sexista vigente. [4]
Este quadro precisa mudar, porque não é normal e não é o preço a pagar para participar da política. E essa é uma tarefa de todas e de todos.
[1] Artículo 3. Definición de Violencia contra las mujeres en la vida política. Debe entenderse por "violencia contra las mujeres en la vida política" cualquier acción, conducta u omisión, realizada de forma directa o a través de terceros que, basada en su género, cause daño o sufrimiento a una o a varias mujeres, y que tenga por objeto o por resultado menoscabar o anular el reconocimiento, goce o ejercicio de sus derechos políticos. La violencia contra las mujeres en la vida política puede incluir, entre otras, violencia física, sexual, psicológica, moral, económica o simbólica.
[2] Instituto Alziras. Censo das Prefeitas Brasileiras (Mandato 2021-2024). Disponível em: http://prefeitas.institutoalziras.org.br/censo/
[3] Relatório 2020-2021 de violência política contra a mulher / organização de Desirée Cavalcante Ferreira, Carla de Oliveira Rodrigues, Silvia Maria da Silva Cunha - Brasília: Transparência Eleitoral Brasil, 2021. Pgs. 29 e ss.
[4] Relatório 2020-2021 de violência política contra a mulher / organização de Desirée Cavalcante Ferreira, Carla de Oliveira Rodrigues, Silvia Maria da Silva Cunha - Brasília: Transparência Eleitoral Brasil, 2021. Pgs. 29 e ss.
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