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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A política brasileira e a violência simbólica de gênero

"Só porque eu sou uma mulher", série de obras do artista aleXsandro Palombo, em que retrata algumas das mulheres protagonistas da política mundial como vítimas de violência de gênero, no centro de Milão - Miguel MEDINA / AFP
"Só porque eu sou uma mulher", série de obras do artista aleXsandro Palombo, em que retrata algumas das mulheres protagonistas da política mundial como vítimas de violência de gênero, no centro de Milão Imagem: Miguel MEDINA / AFP

Ana Claudia Santano é Doutora e Mestra em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad de Salamanca, tem estância pós-doutoral em Direito Constitucional na Universidad Externado e em Direito Público Econômico, na PUCPR. É Professora de Direito Constitucional, Eleitoral e Direitos Humanos em diversas instituições no Brasil e na América Latina e Coordenadora-geral da organização Transparência Eleitoral Brasil.

Colunista do UOL

21/03/2023 04h00

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Imaginemos a seguinte situação: há um debate em algum plenário do país, de alguma casa legislativa (municipal, estadual ou federal, não importa), e se pronuncia uma mulher, defendendo pautas que podem contrariar padrões predominantes tanto na política quanto na sociedade brasileira (não citarei nenhum tema em específico para manter este exercício o mais neutro possível).

Logo em seguida, um homem profere um discurso que se opõe ao dito pela mulher parlamentar. O natural seria combater as ideias com argumentos, no entanto, o homem prefere atacar a pessoa da mulher parlamentar, chamando-a de adjetivos que comumente são usados, como "burra", de que "não entende o que está sendo falado", ou "você está desequilibrada para dizer algo assim". Após este embate, a mulher é responsabilizada pelos seus pares por ter provocado o episódio.

Parece exagero, mas não é. Essa situação "fictícia" retrata o que se tem naturalizado no Brasil durante décadas da presença de mulheres em espaços de poder. A violência simbólica que se extrai dessa situação hipotética e de tantas reais demonstra cabalmente que uma mulher está sempre exposta ao maltrato de homens que as julgam inferiores e que são fruto de uma sociedade baseada no estereótipo de gênero.

A Lei Modelo Interamericana para Prevenir Sancionar e Erradicar a Violência Contra as Mulheres na Vida Política traz a definição para violência política de gênero como "qualquer ação, conduta ou omissão, realizada de forma direta ou através de terceiros que, baseadas no seu gênero, causem dano ou sofrimento a uma ou a várias mulheres, e que tenha como propósito ou resultado depreciar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício dos seus direitos políticos."[1] (tradução livre).

Neste conceito está a ideia de que esse tipo de violência possui um impacto diferenciado nas mulheres. Palavras ditas podem não ter significado violento, mas o contexto aqui importa, como o tom de voz e a postura do homem parlamentar que as proferiu, dirigidas exclusivamente à mulher, também parlamentar. Estas manifestações podem vir com o intuito de inferiorizar a mulher, colocá-la "no seu lugar", tratá-la sem o respeito que o mesmo homem parlamentar confere aos seus pares também homens.

Após situações de violência política simbólica, muitas mulheres parlamentares relatam medo de passar novamente pela experiência, e não é à toa. Segundo levantamento feito pelo Instituto Alziras, 58% das prefeitas no Brasil afirmam já terem sofrido assédio ou violência política pelo fato de ser mulher. Além disso, 1 em cada 2 prefeitas não registraram boletins de ocorrência e, dentre elas, 40% não acredita na eficácia da apuração de denúncias sobre esse tipo de violência. Por fim, 50% das que denunciaram consideram que os casos não tiveram a devida apuração e responsabilização dos agressores.[2]

Segundo o Relatório 2020-2021 do Observatório de Violência Política Contra a Mulher, as formas não-físicas de violência política, principalmente a simbólica e a psicológica, passam por uma espécie de naturalização social ou tolerância devido à cultura patriarcal, o que torna difícil o seu reconhecimento. Além disso, são experimentadas de maneiras distintas por cada vítima, influenciadas pelos contextos culturais e sociais nos quais elas estão inseridas.[3]

Nesse ponto, deve-se ter em mente que, muitas vezes, as condutas violentas são tratadas como mero "custo político" que a mulher precisa pagar caso queira continuar na política, descontextualizando a realidade desigual em que operam. Isso ocorre, por exemplo, quando da negação ou da interrupção do direito de fala nos parlamentos e da negação da autoridade de mulheres, o que pode ser operado por colegas ou subordinados. Aqui é visualizada a busca em coagir, menosprezar ou causar constrangimento à mulher, com o intuito de apontar um valor político menor na sua atuação e manter a ordem sexista vigente. [4]

Este quadro precisa mudar, porque não é normal e não é o preço a pagar para participar da política. E essa é uma tarefa de todas e de todos.

[1] Artículo 3. Definición de Violencia contra las mujeres en la vida política. Debe entenderse por "violencia contra las mujeres en la vida política" cualquier acción, conducta u omisión, realizada de forma directa o a través de terceros que, basada en su género, cause daño o sufrimiento a una o a varias mujeres, y que tenga por objeto o por resultado menoscabar o anular el reconocimiento, goce o ejercicio de sus derechos políticos. La violencia contra las mujeres en la vida política puede incluir, entre otras, violencia física, sexual, psicológica, moral, económica o simbólica.

[2] Instituto Alziras. Censo das Prefeitas Brasileiras (Mandato 2021-2024). Disponível em: http://prefeitas.institutoalziras.org.br/censo/

[3] Relatório 2020-2021 de violência política contra a mulher / organização de Desirée Cavalcante Ferreira, Carla de Oliveira Rodrigues, Silvia Maria da Silva Cunha - Brasília: Transparência Eleitoral Brasil, 2021. Pgs. 29 e ss.

[4] Relatório 2020-2021 de violência política contra a mulher / organização de Desirée Cavalcante Ferreira, Carla de Oliveira Rodrigues, Silvia Maria da Silva Cunha - Brasília: Transparência Eleitoral Brasil, 2021. Pgs. 29 e ss.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL