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A religião na política brasileira: um mal (ou bem) necessário

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política e religião Imagem: iStockphoto

José Paes Neto é advogado, mestre em Direito pela UERJ e membro da ABRADEP

25/10/2022 04h00

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Nas eleições de 2022, o debate sobre a pauta religiosa vem ganhando cada vez mais protagonismo. As campanhas dos candidatos Lula e Bolsonaro travam uma verdadeira "guerra santa" em busca do voto religioso, em especial o evangélico, com ataques que, na maioria das vezes, ultrapassam a linha da civilidade, impregnados de informações inverídicas ou descontextualizadas.

A busca pelo voto religioso e as preocupações acerca dos eventuais abusos cometidos pelas organizações religiosas e pelos candidatos são legítimas e merecem a devida atenção por parte da sociedade e, em especial, pelo Poder Judiciário.

Necessário, contudo, que essas preocupações, muitas vezes recheadas de preconceitos, não se transformem em um perigoso instrumento de cerceamento de direitos fundamentais indispensáveis à democracia, como a livre manifestação do pensamento, de consciência e crença e de associação, afastando a representatividade religiosa do saudável debate político, relegando-a ao perigoso e obscuro caminho do radicalismo, como já vem acontecendo nessas eleições.

O Brasil, sobretudo nas suas classes mais populares, vai deixando de ser uma nação católica e se transformando em uma potência evangélico-pentecostal global.

O sucesso dessas religiões no Brasil também tem a ver com uma classe social específica, que nasceu do processo de ascensão social de parcela das camadas populares e que encontrou no pentecostalismo um novo discurso para a sua ação no mundo, em especial para fazer frente aos setores dominantes da sociedade.

Assim, se faz necessário estabelecer parâmetros para distinguir o que constitui a saudável luta pelo poder desse novo, porém, relevante estrato social, e o que caracteriza o abuso de poder dessas organizações religiosas e de políticos que se valem da pauta de costumes para atrair parcela desse eleitorado.

O estado constitucional, dentro do contexto de inevitável luta pelo poder, deve garantir, tanto quanto possível, paridade de armas e que a disputa ocorra em um clima de liberdade, não apenas para aqueles que se confrontam na busca pelo acesso ou manutenção do poder, mas também e, sobretudo, para a sociedade que, seguindo as regras do jogo, optará por um dos competidores.

A tentativa de afastar o discurso religioso, em especial o pentecostal, da pauta eleitoral já traz efeitos danosos à legitimidade do processo político brasileiro, relegando importante estrato da sociedade ao perigoso caminho da clandestinidade.

A diversidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis encontrada em sociedades democráticas é uma característica permanente da cultura pública, e não uma simples condição histórica que logo desaparecerá, como ensina John Rawls.

Por isso, é necessário para a legitimação do Estado e do Direito que todos participem do debate público na tomada de decisões políticas.

Os costumes, valores e hábitos de um estrato significativo da sociedade, que se sente representado pelas organizações religiosas pentecostais, não podem ser simplesmente ignorados, como se a vida em sociedade comportasse uma única visão, em especial aquela que comumente prevalece nas elites tradicionais.

É justamente esse preconceito com os valores e hábitos pentecostais que trouxe o Brasil para o momento de radicalismo vivido nessas eleições, em que a pauta de costumes dominou o debate eleitoral, na tentativa de os candidatos ampliarem ou recuperarem o voto religioso.

É necessário compreender que o processo democrático deve envolver todas as pessoas e seus modos de visão do mundo, fazendo com que as exigências morais e culturais surgidas no debate político sejam compreendidas como limites a uma modernização imposta por forças externas, já que pode destruir o laço de solidariedade necessário a um Estado Democrático de Direito.

Os eventuais abusos do poder religioso no processo político e a desvirtuação do seu discurso, não devem ser combatidos com base na repressão, mas com diálogo, sob pena de enclausurar esse importante estrato social dentro de suas próprias visões, induzindo-os ao perigoso caminho do radicalismo, o que já vivenciamos no atual processo eleitoral.

A separação entre Estado e Igreja consagrada pela Constituição tem a ver com intransigível e necessária neutralidade, mas não pode ser compreendida como determinação à abstenção da participação do discurso religioso da esfera política.

Evidente que o anseio pela ocupação dos espaços de poder, por um lugar na sociedade, conduz inevitavelmente ao abuso do poder, sendo certo, contudo, que a Justiça Eleitoral, a partir das disposições constitucionais e legais vigentes, dispõe dos instrumentos necessários para coibir que o discurso religioso seja transformado em uma perigosa arma de desvirtuamento da vontade popular, como estamos vivenciando nessas eleições.