Amanda Cotrim

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Reportagem

Nem geleia, nem iogurte: argentinos cortam a lista do mercado

"Antes as pessoas compravam o essencial e um pouco a mais: como uma geleia, um iogurte, mas agora elas só entram aqui para levar o básico. Os produtos que vendemos aumentaram uns 60% nas últimas semanas. Como estão os preços no Brasil?", me pergunta Sabrina*, proprietária de uma loja de produtos naturais, conhecida como dietéticas, muito comuns em Buenos Aires.

Em novembro de 2023, o estabelecimento, no bairro de Chacarita, tinha filas, segundo Sabrina. Mas, desde as medidas econômicas encabeçadas pelo governo de Javier Milei, "o consumo diminuiu muito, pelo menos uns 60%", afirmou.

Apesar da crise econômica crônica na Argentina, a classe média pós-pandemia seguia consumindo. Prova disso eram bares e restaurantes portenhos lotados de segunda a segunda.

A justificativa de economistas é que o argentino que não tinha condições de guardar dinheiro por causa da desvalorização da moeda preferia gastar em comida e viagens nacionais, dois valores culturais para o argentino.

Andando pelas ruas de Buenos Aires hoje é possível notar que estabelecimentos que antes ficavam cheios, como supermercados, açougues e quitandas, assim como cafeterias, estão com o consumo reduzido, com menos pessoas circulando.

Funcionário de um supermercado em Buenos Aires troca preços de produtos diariamente com valores atualizados
Funcionário de um supermercado em Buenos Aires troca preços de produtos diariamente com valores atualizados Imagem: Amanda Cotrim/UOL

'Não é culpa deste governo', diz taxista

Para o taxista Alberto Dabbah, são as férias do mês de janeiro "que deixam a cidade mais vazia". Ele reconhece que o aumento do custo de vida também tem impactado a dinâmica na cidade, mas poupa o novo governo.

Dabbah diz que optou por Patricia Bullrich no primeiro turno e que só votou em mIlei porque o ex-presidente Maurício Macri o apoiou — assim como para 55% dos eleitores do então candidato ultraliberal. Para ele, a responsabilidade pela subida abrupta de preços de produtos e serviços é um "efeito colateral" do governo anterior, de Alberto Fernandez.

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O que estamos vivendo agora é resultado do peronismo. Essa situação difícil de agora é um mal necessário para poder melhorar mais na frente.
Alberto Dabbah, taxista

A perspectiva de Dabbah faz coro ao discurso do próprio Milei, que em sua posse, em 10 de dezembro, afirmou que recebia um país destruído e que por isso ele estava comprometido com mudanças que chamou de estruturais. Seria o modo de evitar, em suas palavras, uma hiperinflação.

A inflação anual da Argentina atingiu 211,4%, superando a Venezuela — já a mensal em dezembro registrou 25,5%, a maior em 30 anos.

Dabbah diz não saber se a população terá paciência para "bancar" o novo governo, caso os preços não se estabilizem. A gasolina, essencial para o trabalho dele, subiu pelo menos 27% desde o início do ano.

"Agora estamos pagando o que deveria ser. A gasolina é cara no mundo inteiro. O preço antes estava maquiado pelos subsídios'' afirmou Dabbah, que recentemente se aposentou com um salário de 105 mil pesos, equivalente a 480 reais, na cotação blue do real para pesos argentinos.

Posto de gasolina em Buenos Aires
Posto de gasolina em Buenos Aires Imagem: Amanda Cotrim/UOL
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Apesar da situação econômica, e expectativa do próprio governo de que a vida ficará mais difícil, Milei não tem enfrentado grande resistência popular. Isso porque os eleitores do presidente argumentam que ele está há um mês no governo e não pode ser responsabilizado pela crise.

Tanto o mega decreto como a Lei Ônibus — ambos criados pelo Executivo — são entendidos por parte da população como uma mudança necessária para "colocar a casa em ordem".

A chamada Lei ônibus é um pacote de leis que permite a Milei para fazer reformas estruturais do pais até 2025 e que pune quem se manifesta contra em vias públicas. Já o Decreto de Necessidade e Urgência é uma espécie de medida provisória que dá poderes ao presidente para revogar subsídios de tarifas e serviços públicos

Medo do que pode acontecer

Amanicure Erika  Cedeno, em seu apartamento, onde atende suas clientes em Buenos Aires
Amanicure Erika Cedeno, em seu apartamento, onde atende suas clientes em Buenos Aires Imagem: Amanda Cotrim/UOL

A manicure Erika Fernanda Cedeno, 33, é colombiana e vive na Argentina com o enteado e o marido, que trabalha como motorista de aplicativo.

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"Estou em Buenos Aires há quase dez anos e nunca vi uma situação como essa. A inflação sempre foi um problema, mas agora como está o país eu nunca vivi", disse. Para ela, é o mês de janeiro "mais parado" desde que trabalha como manicure na Argentina.

Minhas clientes faziam as unhas semanalmente, mas agora estão fazendo mensalmente.
Erika Fernanda Cedeno, manicure

Para Érika, a medida que mais a assusta é o fim da lei de aluguel, pois, segundo ela, a lei era uma proteção para a população. A manicure e o marido ganham em pesos e temem o futuro. "Tenho medo do que pode acontecer, porque as pessoas quando não tem o que comer vão roubar", desabafou.

A venezuelana Stefania Valbuena, 25, migrou para a Argentina com os primos há cinco anos. Ela trabalha como esteticista e ganha na moeda local.

A comunidade venezuelana foi a que mais cresceu na Argentina nos últimos três anos, com mais de 300 mil residências outorgadas, de acordo com dados do setor de imigração da Argentina.

A venezuelana Estefania Valbuena, que migrou para Buenos Aires há 5 anos, em sua casa onde atende como esteticista
A venezuelana Estefania Valbuena, que migrou para Buenos Aires há 5 anos, em sua casa onde atende como esteticista Imagem: Amanda Cotrim/UOL

A jovem divide seu apartamento entre residência e local de trabalho. Segundo ela, o governo de Fernandez a fazia lembrar a Venezuela de 2015. "A Argentina ia ser transformada na Venezuela. Os produtos e serviços, como transporte público, eram mais baratos porque estavam subsidiados e isso só prejudicou o país" disse Stefania, que afirma não ser apoiadora de Milei, mas estar a favor de algumas novas medidas.

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Sou a favor de que o governo abra espaço para empresas estrangeiras e apoie os empresários que geram emprego. Também sou a favor de cobrar mensalidade dos estrangeiros, porque muitos vêm estudar aqui e depois de formados vão embora.
Stefania Valbuena, esteticista

"Só não concordo que Milei permita que qualquer pessoa possa comprar terras na Argentina. Não quero que vendam a Patagônia. Isso não está certo", disse, referindo-se à medidas que flexibiliza a compra de terras argentinas por corporações estrangeiras.

Mudança diária de preços em supermercados

Desde a chegada do novo governo, a Argentina vive uma liberação de preços, diminuição de subsídios e desvalorização da moeda em mais de 50%. Essa situação tem obrigado Camila* a mudar diariamente os preços dos produtos no supermercado onde trabalha.

O que mais me estressa são os clientes reclamando. Eu tento ser empática mas é difícil. Me põe de muito mau humor.
Camila, funcionária de um supermercado no bairro de Almagro

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Ela disse que a situação está assim desde o governo anterior. "Não pense que isso é por causa do Milei. Antes também mudávamos os preços", afirmou a atendente, que ressaktou, porém, que as mudanças de preço não eram diárias como agora.

Supermercado em Buenos Aires vende o quilo de tomate a R$7,70
Supermercado em Buenos Aires vende o quilo de tomate a R$7,70 Imagem: Amanda Cotrim/UOL

Milei tem a maioria das urnas, mas não no Congresso

O novo presidente tem o apoio das urnas e sofre resistência dos outros 44% da população que não votaram em seu projeto. No entanto, o Congresso é o calcanhar de Aquiles de Milei que não tem a maioria nem no Senado e nem na Câmara.

Até o FMI (Fundo Monetário Internacional), que respalda as medidas econômicas de Milei, ressalta a necessidade de o novo presidente obter apoio político, a fim de que tais medidas possam ser consolidadas a longo prazo.

Entregador de um aplicativo de delivery pelas ruas de Buenos Aires
Entregador de um aplicativo de delivery pelas ruas de Buenos Aires Imagem: Amanda Cotrim/UOL
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Protesto do dia 24, uma prova de fogo pra Milei

Apesar de Buenos Aires ter registrado protestos espontâneos e organizados por centrais sindicais, as ruas ainda estão frias, o que dá a impressão de que Milei mantém o apoio de seus eleitores.

Uma prova de fogo para o novo governo deve ocorrer no próximo dia 24, quando centrais sindicais prometem uma paralisação nacional de 12 horas, com protestos no Congresso a fim de pressionar os legisladores contra as medidas econômicas, políticas e sociais.

Há expectativa por parte de políticos do partido de Milei, o Liberdade Avança, de que as medidas sejam votadas pela Câmara dos Deputados nesse mesmo dia para que possam seguir ao Senado até o dia 31 deste mês.

*Nomes ficcionais para preservar a fonte

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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