Nem geleia, nem iogurte: argentinos cortam a lista do mercado
"Antes as pessoas compravam o essencial e um pouco a mais: como uma geleia, um iogurte, mas agora elas só entram aqui para levar o básico. Os produtos que vendemos aumentaram uns 60% nas últimas semanas. Como estão os preços no Brasil?", me pergunta Sabrina*, proprietária de uma loja de produtos naturais, conhecida como dietéticas, muito comuns em Buenos Aires.
Em novembro de 2023, o estabelecimento, no bairro de Chacarita, tinha filas, segundo Sabrina. Mas, desde as medidas econômicas encabeçadas pelo governo de Javier Milei, "o consumo diminuiu muito, pelo menos uns 60%", afirmou.
Apesar da crise econômica crônica na Argentina, a classe média pós-pandemia seguia consumindo. Prova disso eram bares e restaurantes portenhos lotados de segunda a segunda.
A justificativa de economistas é que o argentino que não tinha condições de guardar dinheiro por causa da desvalorização da moeda preferia gastar em comida e viagens nacionais, dois valores culturais para o argentino.
Andando pelas ruas de Buenos Aires hoje é possível notar que estabelecimentos que antes ficavam cheios, como supermercados, açougues e quitandas, assim como cafeterias, estão com o consumo reduzido, com menos pessoas circulando.
![Funcionário de um supermercado em Buenos Aires troca preços de produtos diariamente com valores atualizados Funcionário de um supermercado em Buenos Aires troca preços de produtos diariamente com valores atualizados](https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/7a/2024/01/17/funcionario-de-um-supermercado-em-buenos-aires-troca-precos-de-produtos-diariamente-com-valores-atualizados-1705523757008_v2_750x421.jpg)
'Não é culpa deste governo', diz taxista
Para o taxista Alberto Dabbah, são as férias do mês de janeiro "que deixam a cidade mais vazia". Ele reconhece que o aumento do custo de vida também tem impactado a dinâmica na cidade, mas poupa o novo governo.
Dabbah diz que optou por Patricia Bullrich no primeiro turno e que só votou em mIlei porque o ex-presidente Maurício Macri o apoiou — assim como para 55% dos eleitores do então candidato ultraliberal. Para ele, a responsabilidade pela subida abrupta de preços de produtos e serviços é um "efeito colateral" do governo anterior, de Alberto Fernandez.
O que estamos vivendo agora é resultado do peronismo. Essa situação difícil de agora é um mal necessário para poder melhorar mais na frente.
Alberto Dabbah, taxista
A perspectiva de Dabbah faz coro ao discurso do próprio Milei, que em sua posse, em 10 de dezembro, afirmou que recebia um país destruído e que por isso ele estava comprometido com mudanças que chamou de estruturais. Seria o modo de evitar, em suas palavras, uma hiperinflação.
A inflação anual da Argentina atingiu 211,4%, superando a Venezuela — já a mensal em dezembro registrou 25,5%, a maior em 30 anos.
Dabbah diz não saber se a população terá paciência para "bancar" o novo governo, caso os preços não se estabilizem. A gasolina, essencial para o trabalho dele, subiu pelo menos 27% desde o início do ano.
"Agora estamos pagando o que deveria ser. A gasolina é cara no mundo inteiro. O preço antes estava maquiado pelos subsídios'' afirmou Dabbah, que recentemente se aposentou com um salário de 105 mil pesos, equivalente a 480 reais, na cotação blue do real para pesos argentinos.
![Posto de gasolina em Buenos Aires Posto de gasolina em Buenos Aires](https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/05/2024/01/17/posto-de-gasolina-em-buenos-aires-1705523106956_v2_750x421.jpg)
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OLHAR APURADO
Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receberApesar da situação econômica, e expectativa do próprio governo de que a vida ficará mais difícil, Milei não tem enfrentado grande resistência popular. Isso porque os eleitores do presidente argumentam que ele está há um mês no governo e não pode ser responsabilizado pela crise.
Tanto o mega decreto como a Lei Ônibus — ambos criados pelo Executivo — são entendidos por parte da população como uma mudança necessária para "colocar a casa em ordem".
A chamada Lei ônibus é um pacote de leis que permite a Milei para fazer reformas estruturais do pais até 2025 e que pune quem se manifesta contra em vias públicas. Já o Decreto de Necessidade e Urgência é uma espécie de medida provisória que dá poderes ao presidente para revogar subsídios de tarifas e serviços públicos
Medo do que pode acontecer
![Amanicure Erika Cedeno, em seu apartamento, onde atende suas clientes em Buenos Aires Amanicure Erika Cedeno, em seu apartamento, onde atende suas clientes em Buenos Aires](https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/18/2024/01/17/erika-cedeno--33-anos-manicure-em-seu-apartamento-onde-atende-suas-clientes-em-buenos-aires-1705525762615_v2_450x600.jpg)
A manicure Erika Fernanda Cedeno, 33, é colombiana e vive na Argentina com o enteado e o marido, que trabalha como motorista de aplicativo.
"Estou em Buenos Aires há quase dez anos e nunca vi uma situação como essa. A inflação sempre foi um problema, mas agora como está o país eu nunca vivi", disse. Para ela, é o mês de janeiro "mais parado" desde que trabalha como manicure na Argentina.
Minhas clientes faziam as unhas semanalmente, mas agora estão fazendo mensalmente.
Erika Fernanda Cedeno, manicure
Para Érika, a medida que mais a assusta é o fim da lei de aluguel, pois, segundo ela, a lei era uma proteção para a população. A manicure e o marido ganham em pesos e temem o futuro. "Tenho medo do que pode acontecer, porque as pessoas quando não tem o que comer vão roubar", desabafou.
A venezuelana Stefania Valbuena, 25, migrou para a Argentina com os primos há cinco anos. Ela trabalha como esteticista e ganha na moeda local.
A comunidade venezuelana foi a que mais cresceu na Argentina nos últimos três anos, com mais de 300 mil residências outorgadas, de acordo com dados do setor de imigração da Argentina.
![A venezuelana Estefania Valbuena, que migrou para Buenos Aires há 5 anos, em sua casa onde atende como esteticista A venezuelana Estefania Valbuena, que migrou para Buenos Aires há 5 anos, em sua casa onde atende como esteticista](https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/70/2024/01/17/estefania-valbuena--venezuelana-de-25-anos-que-migrou-para-buenos-aires-ha-5-anos-em-sua-casa-onde-atende-como-esteticista-1705525717045_v2_750x421.jpg)
A jovem divide seu apartamento entre residência e local de trabalho. Segundo ela, o governo de Fernandez a fazia lembrar a Venezuela de 2015. "A Argentina ia ser transformada na Venezuela. Os produtos e serviços, como transporte público, eram mais baratos porque estavam subsidiados e isso só prejudicou o país" disse Stefania, que afirma não ser apoiadora de Milei, mas estar a favor de algumas novas medidas.
Sou a favor de que o governo abra espaço para empresas estrangeiras e apoie os empresários que geram emprego. Também sou a favor de cobrar mensalidade dos estrangeiros, porque muitos vêm estudar aqui e depois de formados vão embora.
Stefania Valbuena, esteticista
"Só não concordo que Milei permita que qualquer pessoa possa comprar terras na Argentina. Não quero que vendam a Patagônia. Isso não está certo", disse, referindo-se à medidas que flexibiliza a compra de terras argentinas por corporações estrangeiras.
Mudança diária de preços em supermercados
Desde a chegada do novo governo, a Argentina vive uma liberação de preços, diminuição de subsídios e desvalorização da moeda em mais de 50%. Essa situação tem obrigado Camila* a mudar diariamente os preços dos produtos no supermercado onde trabalha.
O que mais me estressa são os clientes reclamando. Eu tento ser empática mas é difícil. Me põe de muito mau humor.
Camila, funcionária de um supermercado no bairro de Almagro
Ela disse que a situação está assim desde o governo anterior. "Não pense que isso é por causa do Milei. Antes também mudávamos os preços", afirmou a atendente, que ressaktou, porém, que as mudanças de preço não eram diárias como agora.
![Supermercado em Buenos Aires vende o quilo de tomate a R$7,70 Supermercado em Buenos Aires vende o quilo de tomate a R$7,70](https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/79/2024/01/17/supermercado-em-buenos-aires-vende-o-quilo-de-tomate-a-r770-1705523444612_v2_750x421.jpg)
Milei tem a maioria das urnas, mas não no Congresso
O novo presidente tem o apoio das urnas e sofre resistência dos outros 44% da população que não votaram em seu projeto. No entanto, o Congresso é o calcanhar de Aquiles de Milei que não tem a maioria nem no Senado e nem na Câmara.
Até o FMI (Fundo Monetário Internacional), que respalda as medidas econômicas de Milei, ressalta a necessidade de o novo presidente obter apoio político, a fim de que tais medidas possam ser consolidadas a longo prazo.
![Entregador de um aplicativo de delivery pelas ruas de Buenos Aires Entregador de um aplicativo de delivery pelas ruas de Buenos Aires](https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/0c/2024/01/17/entregador-de-um-aplicativo-de-delivery-pelas-ruas-de-buenos-aires-em-um-dia-de-chuva-1705523261368_v2_750x421.jpg)
Protesto do dia 24, uma prova de fogo pra Milei
Apesar de Buenos Aires ter registrado protestos espontâneos e organizados por centrais sindicais, as ruas ainda estão frias, o que dá a impressão de que Milei mantém o apoio de seus eleitores.
Uma prova de fogo para o novo governo deve ocorrer no próximo dia 24, quando centrais sindicais prometem uma paralisação nacional de 12 horas, com protestos no Congresso a fim de pressionar os legisladores contra as medidas econômicas, políticas e sociais.
Há expectativa por parte de políticos do partido de Milei, o Liberdade Avança, de que as medidas sejam votadas pela Câmara dos Deputados nesse mesmo dia para que possam seguir ao Senado até o dia 31 deste mês.
*Nomes ficcionais para preservar a fonte
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