Argentinos protestam contra os crimes da ditadura e o negacionismo de Milei
Milhares de argentinos tomaram as ruas de Buenos Aires e outros pontos do país neste domingo (24), dia em que se celebra o movimento "Memória, Verdade e Justiça" no país. A data relembra o dia do último golpe militar na Argentina, cujo regime se estabeleceu de 1976 a 1983 e foi a mais sangrenta ditadura militar da América Latina, com 30 mil pessoas desaparecidas, presas e mortas. A manifestação começou por volta do meio-dia (horário local e de Brasília), na praça do Congresso até a Praça de Maio, na Casa Rosada, sede do governo nacional. A marcha adquiriu um caráter de protesto contra o governo do presidente Javier Milei, que relativiza os crimes da ditadura e foi o primeiro presidente de ultra-direita a ascender ao poder após a retomada da democracia no país, há quarenta anos.
Mirta Vittar, que estava na marcha, em Buenos Aires, é irmã de Juan Carlos Vittar, estudante que desapareceu em 1977, aos 19 anos. Sua mãe morreu sem saber do paradeiro do filho.
Ela veio com os filhos a marcha para lembrar de não esquecer que "foram 30 mil e que ditadura nunca mais". Mirta afirmou ao UOL que o governo de Milei é um "desaparecedor do Estado" e seu objetivo é acabar com "a única garantia das liberdades individuais", por isso, segundo ela, o presidente minimiza os crimes da ditadura.
Nas ruas, bandeiras e cartazes com os dizeres "ditadura nunca mais", "por memória", "são 30 mil" (desaparecidos) e "hasta la victoria, siempre", fazendo uma provocação a vice de Milei, Victoria Villarruel, que é de família militar e relativa os crimes cometidos pelo Estado, na ditadura.
A versão do governo
Milei é o primeiro presidente da história da Argentina que questiona o consenso contra os crimes da ditadura. Horas antes da tradicional marcha, a Casa Rosada divulgou um vídeo sobre o Dia da Memória, pela verdade e justiça "completa", com depoimentos de um jornalista, um ex-guerrilheiro e a filha de um militar que foi morto durante o regime em Tucuman, no norte da Argentina. militares e filhos de militares que morreram na ditadura. No vídeo, os guerrilheiros são chamados de terroristas. O material também afirma que os crimes que aconteceram no regime militar não podem ser chamados de genocidio e que não foram trinta mil desaparecidos, mortos e presos
A divulgação do vídeo se junta a uma mensagem da vice-presidente, Victoria Villarruel, que é filha, neta e sobrinha de militares, na qual nega que os desaparecidos tenham sido 30.000 e argumentou que «os direitos humanos são para todos.
Presidente e vice relativizam crimes da ditadura
Milei afirmou durante a campanha eleitoral que foram 8.753 desaparecidos e que os militares 'cometeram excessos'. Sua vice afirmou diversas vezes que exige uma "memória completa", que incluiria, em suas palavras, as vítimas das guerrilhas. Villarruel também disse em campanha presidencial que pretende desarticular o Museu da Memória, referência da memória contra a ditadura, onde funcionou um dos maiores centros de totura, para instalar uma escola "para que todos os argentinos possam aproveitar ".
Violencia atribuida a slogan de Milei
A marcha histórica na praça de Maio por Memória, Verdade e Justiça também aconteceu diante da forte comoção que se instalou no país e por pedido de justiça pela agressão que uma integrante da Rede Los Hijos (os filhos), de filhos das vítimas da ditadura, que denunciou na quinta, dia 21, ter sido abusada e ameaçada de morte na primeira semana de março, por homens que entraram em sua casa e escreveram na parede "VVLC", sigla que seria a abreviação de Viva la Libertad Carajo, slogan do presidente Milei. A organização afirmou que a responsabilidade por esse ataque é do governo nacional.
Ex presidente peronista culpa Milei por violência
O ex-presidente peronista Alberto Fernandez disse em uma rede social que o ataque é fruto do discurso de ódio que Milei ajudou a produzir no país, comparando a violência contra a integrante da organização Hijos ao atentado que sofreu Cristina Kirchner, em setembro de 2022. O ex-presidente afirmou que quando Milei foi eleito pediu ao novo presidente para "moderar o discurso " contra quem pensa diferente, temendo reações violentas e de ódio de apoiadores de Milei a pessoas que tem outras posições ideológicas.
Não foi guerra, foi genocidio
Uma das organizações mais importantes contra os crimes da ditadura militar argentina são as Avós e Mães da Praça de Maio, ícones no país, que lutam, há quase cinquenta anos, pela memória, verdade e justiça das vítimas do regime. A integrante e uma das fundadoras do movimento das Mães da Praça de Maio, Taty Almeida, afirmou que o principal objetivo da marcha de hoje é lembrar porque existe o dia 24 de março "e que fique claro, aqui [na Argentina] não houve uma guerra e sim um genocidio'.
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Quero receberA presidente das Avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto, afirmou que a marcha não é um festejo, mas um ato de manter viva a memória, saber o que aconteceu nessa época para que isso não volte a acontecer nunca mais. "Não queremos que as novas gerações passem o que passamos, de buscar nossos filhos e netos por uma ditadura feroz".
Julgamento histórico levou militares para a cadeia
Em 1985, a Argentina julgou em um tribunal civil líderes das três primeiras juntas militares que governaram o país no último golpe de Estado, que durou de 1976 a 1983. Cerca de 700 casos foram apresentados. A maioria dos líderes acusados foram condenados por crimes de lesa humanidade: tortura, sequestro, abuso, roubos de bebes, violacoes e assassinatos. Em 2022, mais 19 ex-membros das forças armadas também foram condenados. A história do julgamento foi contada pelo filme "Argentina, 1985", do diretor Santiago Mitre, que concorreu ao Oscar como melhor longa estrangeiro, em 2023.
O diretor do filme disse à BBC News Mundo na época do lançamento do longa, que "há gerações na Argentina que nasceram dando a democracia como algo certo. E eles não se lembram, não só do julgamento, como mal se lembram da ditadura, e acham que é algo pré-histórico'.
Governo Milei descarta promover indulto aos crimes de lesa-humanidade
O presidente argentino negou no X (ex-Twitter) que habilitaria prisão domiciliar a repressores com idade avançada, informação que circulou na imprensa local dias antes do ato de hoje. "Grande mentira", afirmou Milei em resposta a um jornalista.
Na Argentina, a lei 27156 de 2015 proíbe a anistia, indulto ou mudança na pena dos crimes de genocidio, de lesa-humanidade e crimes de guerra.
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