Crise leva alunos brasileiros de medicina a trocar Argentina por Paraguai
O combo era atraente: estudar medicina em uma boa faculdade cuja mensalidade saía por R$ 400 (no Brasil, o custo é de R$ 10 mil, em média) e ainda morar em Buenos Aires, cidade cosmopolita que prometia qualidade de vida, em meio a uma comunidade de 90 mil brasileiros — dos quais 13 mil são são estudantes em universidades públicas e 7 mil em faculdade particulares, de acordo com o governo argentino.
Essa realidade, no entanto, mudou desde que Javier Milei assumiu a Presidência, em dezembro de 2023 — apesar de a inflação ter desacelerado mais recentemente e o peso oficial ter começado a ganhar força, os preços de produtos e serviços estão liberados e não param de subir. Houve perda do poder de compra e, segundo o Indec (instituto de estatísticas e censo), moradia, luz e água foram os itens que mais subiram em abril (35,6%).
Para quem recebe em real também ficou mais difícil pagar a faculdade, o aluguel, o transporte e o supermercado. Isso porque o câmbio paralelo de real para peso, que antes favorecia os estudantes brasileiros que recebem ajuda da família na moeda brasileira, não evoluiu. Os preços subiram e o real não é mais tão competitivo como antes. Até o ano passado, mesmo com a subida de preços de produtos e serviços, o câmbio paralelo acompanhava a inflação, o que não está acontecendo atualmente. Afetando o orçamento de estudantes brasileiros, como é o caso da brasileira Micaela de Magalhaes Souto, que chegou a Buenos Aires no final de 2022 com o marido para estudar medicina na Fundação Barcelo, uma faculdade particular.
"Comecei pagando R$ 400 no curso e hoje pago R$ 1.200. Cada mês é um valor diferente e já não é possível saber onde esses preços vão parar", disse. Em abril, a Argentina fechou com uma inflação anual de quase 290%. Já a taxa de pobreza chegou a quase 60% em fevereiro, segundo dados oficiais.
Fazendo as malas rumo ao Paraguai
Com a incerteza sobre a situação econômica na Argentina, o casal está fazendo as malas e vendendo seus móveis no bairro portenho de Almagro para se mudar para Ciudad del Este, no Paraguai. Lá pretendem continuar o sonho de se tornarem médicos. Formada no Brasil em odontologia, Micaela disse que a mudança não foi tomada sem angústia.
"Pesquisamos muito sobre o Paraguai. Queremos ser médicos, mas infelizmente no Brasil é muito caro. Eu gosto muito da Argentina, a gente está adaptado, porém, não conseguimos viver nessa situação de incerteza. Cada mês, a mensalidade da faculdade sobe, o aluguel sobe, o mercado sobe. É impossível viver assim", disse ela, que pretende trabalhar como dentista em Foz do Iguaçu, na fronteira, enquanto faz faculdade no Paraguai.
Atualmente, o Paraguai tem pelo menos 30 mil estudantes de medicina, dos quais pelo menos 90% são brasileiros, conforme dados da Direção de Migração. Em algumas faculdades, é comum escutar o português tomando lugar do castelhano.
Além do custo mais baixo nas escolas de medicina, o Paraguai tem atraído brasileiros para empreender com políticas fiscais e investimentos.
Segundo dados do Itamaraty, em 2021 o Paraguai foi o primeiro destino dos imigrantes brasileiros na América Latina, com cerca de 246 mil, o maior país a receber brasileiros na América do Sul, seguido de Guiana Francesa 91.500, Argentina (90mil), Uruguai (59 mil), Bolívia (56.500), Suriname 30.000, Chile (19.300), Colômbia 12.000, Venezuela 11.800, Guiana 11.800 e Peru (6.920 mil) e Equador 3.500
O futuro depois da fronteira
Pensando no futuro da filha de sete meses, o casal Luciana Rodrigues e Rafael dos Santos cruzou a fronteira da Argentina rumo ao Paraguai, em março. Ainda na estrada, Luciana disse por telefone à reportagem que a renda de R$ 6.600 do casal não foi suficiente para sustentar a família na Argentina.
Os dois transferiram o curso de medicina para uma faculdade particular no Paraguai. Há dois meses no novo país, Luciana diz que não se arrepende da escolha.
"Na Argentina, o nosso aluguel reajustou em 280%, o mercado subia todos os dias. De setembro de 2023 a fevereiro de 2024, o convênio médico aumentou mais de dez vezes. No Paraguai conseguimos alugar uma casa com mais facilidade, sem os aumentos abusivos na Argentina", afirmou
Luciana disse que a maioria das faculdades particulares paraguaias oferece, sem custo, uma creche para as estudantes que são mães e precisam amamentar os filhos enquanto tem aulas. "Eles sabem que muitos estudantes deixam a faculdade por não ter quem cuide dos filhos, então a instituição oferece condições para seguirmos estudando", disse .
Brasiguaios
Nos grupos de brasileiros no Paraguai nas redes sociais, estudantes disparam mensagens querendo saber mais sobre o curso de medicina no país vizinho.
A proximidade com a cultura brasileira na zona fronteiriça é uma dos pontos que atraem quem sai do Brasil. O clima também é parecido com o do sul do Brasil, além de diversos produtos brasileiros também serem vendidos do outro lado da fronteira. Na região, é comum encontrar paraguaios que falam e entendem português, além do guarani e do espanhol.
Essa "cara" de Brasil e a estabilidade econômica foram decisivos para que a estudante Danielly de Paula Rocha, 32, deixasse a Argentina no começo de maio, onde cursava medicina, rumo à comunidade de "brasiguaios" na Ciudad Del Este, onde vai estudar na Universidade Central do Paraguai.
"Eu fazia medicina na Universidade de Buenos Aires desde 2022. Em julho de 2023, começou a insegurança de alguns estudantes sobre como ficariam as faculdades públicas da Argentina por questões políticas [ela se refere a uma promessa de Milei de permitir que as faculdades cobrem mensalidade de estrangeiros sem residência permanente]."
Ela afirma que, nesse período, mudou para uma faculdade particular, na qual pagava inicialmente R$ 600 de mensalidade. "Mas desde janeiro tudo subiu descontroladamente na Argentina. Aluguéis e faculdades com ajustes mensais, uma pasta de dente custando R$ 25. Segurei a situação até abril, mas com mais aumentos não consegui me manter, mesmo trabalhando de babá aos finais de semana e recebendo ajuda da família."
Diante da iminente desistência deixar Buenos Aires, Danielly afirma que teve duas alternativas: voltar para o Brasil e desistir do sonho de ser médica ou se mudar para Ciudad del Este e "tentar outra vez" .
"No Paraguai, os custos de aluguel, faculdade, transporte e moradia são mais baratos do que na Argentina", disse a estudante, ressaltando que essa estabilidade econômica gera tranquilidade até para poder estudar e planejar o dia a dia. "Aqui os valores da faculdade são fixos por um ano e o aluguel também'', afirma.
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