Amanda Cotrim

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Reportagem

Argentinos veem alta do aluguel e critério 'abusivo' após decreto de Milei

Os argentinos Afonso e Susana —que preferem não dizer seu sobrenome— e a cachorrinha Bebe estão morando na rua desde o início de abril, entre dois colchões, uma TV, uma geladeira antiga e algumas mochilas e sacolas.

Eles ficam na esquina das ruas Picheuta e Avelino Diaz, no bairro de classe média baixa de Boedo, em Buenos Aires, a poucas quadras do endereço de onde foram desalojados. Dizem que foram enganados pelo proprietário, que prometeu alugar a eles outro imóvel, o que não aconteceu.

Os dois idosos de 60 anos vivem com com o dinheiro de uma pensão que Afonso recebe, no valor de 100 mil pesos argentinos (R$ 500), mais uns bicos que ele fazia. Agora, sem trabalho, a situação chegou ao extremo: morar na rua.

Nunca pensamos que isso fosse acontecer. O que eu mais quero agora é conseguir um trabalho para poder pagar um novo aluguel logo. Encontrar uma casa é o mais urgente pra gente.
Afonso, 60, vive na rua em Buenos Aires

Enquanto Afonso contava sua situação, um amigo dele, coincidentemente, passava de bicicleta pela rua e só então ficou sabendo o que tinha acontecido com o colega.

"Foi uma surpresa. Estava andando de bicicleta e os vi aqui na esquina. Parei para saber o que tinha acontecido e vamos ver se consigo ajudá-lo com um trabalho", disse o amigo, que preferiu não se identificar.

Susana, esposa de Afonso, disse estar desesperada.

Tenho diabetes, problemas de saúde e não tenho dinheiro para comprar meus remédios, nem família em Buenos Aires. Passo muito frio durante a noite. Segura a minha mão para você sentir como ela está gelada.
Susana, 60, vive na rua com o marido

Emocionada, ela se ajoelha em um colchão de solteiro, que divide com o marido e a cachorrinha. O colchão de casal foi improvisado como "parede", para protegê-los do vento gelado do outono portenho. Nesta semana, as temperaturas em Buenos Aires chegaram a 5 ºC durante a madrugada.

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Com problemas de saúde, Susana se queixa do frio nas ruas de Buenos Aires à noite
Com problemas de saúde, Susana se queixa do frio nas ruas de Buenos Aires à noite Imagem: Amanda Cotrim/UOL

Decreto de Milei agravou crise imobiliária

A crise imobiliária existe há anos na Argentina, mas a situação se agravou para os inquilinos após o mega decreto do presidente Javier Milei, o DNU (Decreto de Necessidade e Urgência), vigente desde dezembro do ano passado.

O decreto desvalorizou em mais de 50% a taxa de câmbio oficial, reduzindo o poder de compra dos argentinos, derrubou a lei de aluguéis e desregulou a economia. O texto chegou a ser rechaçado no Senado e ainda espera ser votado na Câmara dos Deputados. A derrubada depende de rejeição pelas duas Casas.

Moradia, água e energia foram os setores que mais subiram na Argentina em abril, atingindo 35,6%, de acordo com dados do Indec (Instituto Nacional de Estatísticas e Censos), divulgados na terça (14). Em seguida, vem comunicação (14,2%), vestuário e calçados (9,6%) e saúde (9,1%),

Apesar de a inflação mensal ter desacelerado de 13% em março para 8,8% em abril, a inflação anual atingiu 289,4%, o maior índice em mais de 30 anos.

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Ao mesmo tempo, a perda do poder aquisitivo em um ano foi de 170%, segundo o Indec. No primeiro trimestre do governo Milei, os salários aumentaram, em média, 10,3%, ficando atrás do aumento dos preços, de 11%, em média.

Valores e exigências estão abusivos, dizem inquilinos

Desde que o mega decreto derrubou a lei de aluguel, os contratos de moradia estão sendo redigidos sem regulamentação específica, e os critérios são cada vez mais abusivos, afirma Gervasio Munoz, da Associação Inquilinos Agrupados.

A associação de inquilinos entrou na Justiça este mês pedindo que o trecho sobre moradia seja anulado. Segundo o pedido, ao qual o UOL teve acesso, "o DNU representa inúmeros prejuízos aos inquilinos, além de inúmeras denúncias que atestam a lesão aos direitos".

Inquilina reclama da incerteza de não saber o valor do seu aluguel nos próximos meses
Inquilina reclama da incerteza de não saber o valor do seu aluguel nos próximos meses Imagem: Reprodução

Nas redes sociais, há várias denúncias sobre exigências e preços abusivos nos contratos de moradia. Anabela Bertoni diz que, com a renovação do contrato, seu aluguel subiu 400%, "sem espaço de negociação" e com reajuste trimestral, considerando o índice de preços ao consumidor (IPC). "Está muito claro por que odiavam a antiga lei", relatou.

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Outra inquilina diz que o fim da lei de aluguel não flexibilizou a quantidade de garantias exigidas pelos proprietários. "Sempre termino aceitando condições abusivas, porque ninguém muda os requisitos de garantia".

Angustiados por não saber quanto vão pagar de aluguel nos próximos meses, moradores pedem condições para se planejarem.

Precisamos de um pouco de planificação em nossas vidas, ou vamos seguir assim, na insegurança, dependendo do que o proprietário decida no dia a dia.
Inquilina

A situação habitacional na Argentina é tão complexa que os jornais locais dedicam parte de seu espaço para explicar aos inquilinos como eles devem calcular os reajustes dos aluguéis de acordo com o índice acordado em contrato.

O que mostra que a crise imobiliária no país não é um assunto pontual, mas um problema crônico, o qual parece crescer mês a mês diante de uma economia que não permite fazer planos a médio e longo prazos.

Não sabemos o que será de nós. Estamos passando frio. Eu estou tentando trabalho para poder pagar um novo aluguel e que aceitem nossa cachorrinha.
Afonso

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Em Buenos Aires, é cada vez mais comum proprietários que não aceitam alugar seus imóveis a pessoas que têm animais de estimação ou, em alguns casos, até crianças.

Aluguel de 2 cômodos varia de R$ 2.570 a R$ 15.400

Em sites especializados, o aluguel de imóveis de um ou dois cômodos em Buenos Aires varia de US$ 500 (R$ 2.570) a US$ 3.000 (R$ 15.400).

Na capital portenha, o inquilino precisa, na maioria das vezes, providenciar algumas garantias, como holerite, fiadores, propriedade familiar na cidade, dois meses de depósito e seguro fiança. Nesse último caso, o inquilino compra a garantia de uma financeira, geralmente de três vezes o valor do aluguel. Ao encerrar o contrato, não recebe esse dinheiro de volta.

De acordo com Munoz, os novos contratos em Buenos Aires não estão considerando a legislação da capital portenha, de 2017, determinando que a comissão dos corretores deve ser o valor de um mês de aluguel, a ser paga pelos proprietários.

O decreto de Milei não regula as comissões porque isso é feito pelas leis estatuais. Em Buenos Aires, La Pampa e Rio Negro, está proibido que as imobiliárias cobrem honorários de inquilinos. Mas a confusão com o decreto é tão grande que as imobiliárias estão cobrando a comissão dos inquilinos em espécie, com o valor que querem. Assim não há provas.
Gervasio Munoz, da Associação Inquilinos Agrupados

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A brasileira Giovana Rodriguez*, junto com o marido, Marcel Oliveira*, que trabalha para uma empresa da Dinamarca, relatou que estava buscando um apartamento em Buenos Aires, pago pela multinacional. Foram obrigados a dar uma comissão imobiliária para poder reservar o apartamento, mesmo sem garantia de que o proprietário aceitaria o acordo.

Tivemos que fazer a reserva para segurar o imóvel. Enquanto isso, o proprietário avaliava se nos aceitaria. Se ele recusasse, teríamos que pagar a comissão da imobiliária mesmo assim. Por sorte, o proprietário aceitou nossa proposta e a gente gostou do apartamento, mas fico pensando que isso pode ser uma máfia, porque independentemente de assinar ou não o contrato, as imobiliárias recebem uma bolada.
Brasileira que vive em Buenos Aires

Setor imobiliário defende nova legislação

A Câmara Imobiliária Argentina defendeu o mega decreto de Milei e o fim da lei de aluguel. Em entrevista, o representante do setor, Damian Cafarella, disse que o fim da lei permitiu uma relação mais igualitária. Segundo ele, a antiga legislação prejudicava proprietários, inquilinos e corretores imobiliários.

"Os proprietários não queriam alugar seus imóveis por períodos longos e com reajuste anual", explicou. A antiga lei de aluguel exigia que os contratos fossem de no mínimo três anos, com ajustes anuais, de acordo com a inflação.

Um estudo realizado pelo site imobiliário Argenprop revelou que em março, a oferta de apartamentos de um ou dois cômodos subiu 300%, em média.

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Governo celebra desaceleração da inflação mensal

O presidente Javier Milei, que foi eleito com a promessa de reduzir o déficit fiscal e baixar a inflação, celebrou em uma rede social o índice de inflação de 8,8% em abril, o menor desde o início de seu governo, há cinco meses.

A inflação acumulada dos primeiros quatro meses deste ano foi de 65%. Já a inflação anual registrou seu maior índice em 30 anos, com 289,4%.

Antes do anúncio oficial do Indec, jornais e usuários de redes sociais estavam na expectativa sobre os dados, já que o governo argentino havia projetado uma inflação de um dígito para abril. Assim que saíram os números, Milei escreveu "gol" como legenda de uma foto na qual ele abraça o ministro da Economia, Luis Caputo.


Na semana passada, o Banco Central da Argentina anunciou uma nota de 10 mil pesos (R$ 50, aproximadamente), pretendendo reduzir a variação de preços. Até então, a cédula de maior valor era de 2.000 pesos (cerca de R$ 10). O objetivo é que o país possa emitir até o fim do ano uma nova nota de 20 mil pesos (R$ 100).

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* os nomes foram trocados porque os brasileiros não queriam expor a empresa e a imobiliária por medo de represália

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