Amanda Cotrim

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Aborto na Argentina: grupos acusam Milei de desinformação e menos remédios

Valéria*, 28 anos, mora na Argentina e, quando descobriu que estava grávida novamente, sentiu que o mundo veio abaixo. Ela e o marido já são pais de uma bebê de 1 ano e meio e decidiram não ter o segundo filho, sobretudo pela preocupação com a instabilidade econômica que tem impedido parte da população de fazer planos a longo prazo. Apesar do medo natural com a situação, Valéria não se sentiu desamparada: ela vive em um país cuja interrupção voluntária de uma gravidez é legal, pública e gratuita.

"Não pensei muito. Tinha certeza que não queria outro filho, mas tive muito medo. Estamos lutando muito, trabalhando muito, porque na Argentina a economia é difícil. Eu e meu esposo entendemos que interromper a gestação seria o melhor para nós três: eu, ele e nossa bebê. Conhecemos a realidade que vivemos e sabemos das limitações", conta ela.

A legalização do aborto na Argentina completou três anos em janeiro — foi aprovada pelo Congresso em 2020 e colocada em vigor em 2021. O texto autoriza que qualquer gestante no país possa interromper voluntariamente a gravidez não desejada até a 14ª semana de gestação. A lei também não impõe restrições a estrangeiras que desejam abortar na Argentina. O médico consultado pode se recusar a conduzir o procedimento, mas tem obrigação de encaminhar a paciente a outro profissional.

No entanto, o direito vem sendo ameaçado desde que Javier Milei assumiu a presidência, em dezembro do ano passado. A opinião do presidente contra a interrupção voluntária da gravidez já era conhecida desde o período da eleição, e vem sendo reiterada por ele com frequência, mas entidades feministas denunciam que decisões do atual governo têm impactado diretamente na realização do procedimento e na compreensão pública sobre a lei.

Milei tem dito que o aborto deve ser um crime "agravado por causa do vínculo". Recentemente, o governo tentou se desassociar de um projeto que busca revogar a lei do aborto e sentenciar gestantes que fizerem o procedimento — diante da repercussão negativa que a proposta teve —, mas tanto o presidente quanto sua vice, Victoria Villarruel, têm disseminado opiniões fortes contra o procedimento que acabam fomentando a proposta, apresentada pelo partido de Milei no Congresso, o Liberdade Avança.

Ambos fizeram posts em suas redes sociais apontando que 245 mil abortos legais foram realizados na Argentina até janneiro de 2024 desde a aprovação da lei. A vice comparou o número ao total de habitantes da província de Terra Del Fuego (190 mil). Milei foi mais longe: repostou uma imagem que dizia "245 mil argentinos perderam a vida pela lei do aborto", sem informar se a soma a que se refere inclui a rede privada.

Os números citados por Milei e Villaruel são maiores do que os dados na saúde pública efetivamente divulgados até agora pelo governo entre janeiro de 2021 e setembro de 2023. Segundo o Ministério da Saúde da Argentina, foram realizados quase 70 mil procedimentos no sistema público de janeiro a setembro do ano passado (69.421). Em 2022 (de janeiro a setembro, foram 58.267 abortos e, em 2021, no mesmo período, 73.487. Nos três anos, foram cerca de 202 mil procedimentos, número menor que o divulgado pelo presidente e sua vice.

Falta de remédios

Na Argentina, a maioria das pessoas que faz o aborto até a 14ª semana de gestação recebe a medicação no hospital, mas só a toma em casa, seguindo as recomendações dos profissionais da saúde (outro método, mais raro, é a aspiração manual endouterina, realizada apenas em hospitais). O protocolo inclui acesso a um procedimento interdisciplinar, com apoio psicológico e atenção à saúde no pós-aborto. Esse ecossistema, no entanto, está ameaçado, denuncia a médica Pilar Galende, da Federação Argentina de Medicina Geral, segundo a qual alguns medicamentos estão em falta.

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Com o mega decreto de necessidade e urgência (DNU), se suprimiu a Agência Nacional de Laboratórios Públicos (ANLAP), responsável pela produção pública de medicamentos. Dessa maneira, explicou Pilar, tanto a pesquisa quanto a produção de medicamentos e matérias primas para remédios, vacinas, insumos e produtos médicos têm sido radicalmente afetadas.

"Nos preocupa essencialmente a produção dos medicamentos Misoprostol e da Mifepristona, que são básicos para interromper a gravidez. A Argentina permitia a distribuição e venda desses medicamentos em farmácia e o uso no sistema público e convênios médicos. Mas agora, com o novo governo, isso tem sido afetado", denuncia ela.

Estamos em um momento de alerta
Pilar Galende, membro da Federação Argentina de Medicina Geral

Eugenia Necochea, da rede Socorristas em Rede - Feministas e Transfeministas Que Abortamos, organização de profissionais da saúde e feministas que oferece apoio às pessoas que desejam realizar o procedimento, reforça que tem recebido relatos de falta de medicamentos em várias regiões.

"Em alguns lugares estão faltando medicamentos e basicamente estão apelando para que os estados façam as compras, porque da União não está chegando nada", conta ela.

Desinformação e recusa de médicos

Para diversas organizações médicas e feministas consultadas pelo UOL, o governo Milei, ainda que não tenha derrubado a lei do aborto, atua diretamente contra a aplicação da mesma. Elas denunciam um processo de desinformação que chega a colocar em dúvida se a lei ainda está em vigor, bem como uma recusa gradual de agentes da saúde em realizarem o procedimento.

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"Com a crise econômica, muitas mulheres não conseguem comprar anticoncepcional, há um medo de que a lei seja derrubada ou que a pessoa não consiga o atendimento em um sistema de saúde", aponta Pilar Galende.

Há uma confusão se o aborto é legalizado ou não. E temos que reforçar que a lei existe e que nossa luta é para que ela seja cumprida.
Pilar Galende

Apesar de o aborto ser legal, ainda é pouco comum que mulheres falem abertamente sobre o assunto. É justamente nesse lugar da vergonha e da repressão que discursos misóginos e contra os direitos das mulheres ganham força, aponta Eugenia Necochea.

"Discursos de ódio, antifeministas e misóginos fazem com que cada vez menos setores de saúde queiram realizar o aborto, porque as pessoas cumprem a lei se existe um Estado que as faça cumprir'', diz Eugenia.

Acolhimento em redes feministas

Em meio às desinformações oficiais, mulheres como Valéria têm encontrado uma teia de solidariedade, afeto e segurança, com proteção da lei e apoio familiar, em organizações feministas que auxiliam com informações precisas sobre o procedimento.

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Valéria descobriu que estava grávida com quatro semanas de gestação e imediatamente procurou As Socorristas.

Fui extremamente acolhida do início ao fim. Soube da organização por causa de uma amiga. Nunca tinha feito um aborto e estava muito perdida.
Valéria*, 28 anos

Para Valéria, o afeto e a proteção contribuíram para que o procedimento, tão invasivo, não fosse doloroso.

"No mesmo dia eu me recuperei muito bem. Não foi dolorido para mim que já tinha tido filho antes", afirma. Aliviada, Valéria diz ter sido a melhor decisão que tomou, mas espera não precisar passar por isso novamente. Ela acredita que a liberdade de abortar a fez ser mais consciente sobre o próprio corpo. "Fiz o procedimento. Não me arrependo. E apoio o aborto legal, consciente e responsável".

*Nome fictício, em depoimento dado em condição de anonimato

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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