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Amaury Ribeiro Jr

Juízes e advogados lucram com empresas falidas enquanto credor leva calote

Esquema entre juízes e advogados toma conta de massas falidas, usa-as para lucro próprio e deixa credores sem pagamento - iStock
Esquema entre juízes e advogados toma conta de massas falidas, usa-as para lucro próprio e deixa credores sem pagamento Imagem: iStock

02/11/2020 04h04

Afastado compulsoriamente pela Corte Especial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) sob a acusação de desviar R$ 50 milhões do patrimônio da massa falida da Construtora Marialva Ltda, o ex-juiz da 3ª Vara Cível de Sete Lagoas (a 70 km de Belo Horizonte) Flávio Prado Kretli, 46 anos, construiu um patrimônio incompatível com sua renda na magistratura, de acordo com a investigação da Corregedoria do TJ.

Kretli, segundo levantamento do UOL, adquiriu, nos últimos seis anos, seis madeireiras e empresas de extração de madeira, quatro fazendas, espalhadas pelo norte de Minas Gerais e vários imóveis no estado, em Sete Lagoas, Belo Horizonte e Teófilo Otoni.

O enriquecimento do ex-juiz é apontado também em um relatório da Corregedoria anexado ao acórdão da Corte do TJ-MG, que determinou o afastamento de Kretli.

Os documentos, obtidos pelo UOL, mostram que de 2014 a 2015 o patrimônio do juiz, que tinha um salário mensal de R$ 22 mil, subiu de R$ 600 mil para quase R$ 1,8 milhão.

A partir de 2012, o ex-juiz deixou de apresentar suas declarações de bens à Justiça, segundo o relatório.

No acórdão do TJ-MG que determinou o afastamento em 2018, os desembargadores concluíram de forma unânime que Kretli nomeava advogados, que seriam seus testas-de-ferro, para administrar massas falidas de empresas.

Juízes e advogados montam "sindicatos"

Os desembargadores concluíram que o ex-juiz e seus aliados montaram uma espécie de "sindicato". O dinheiro da massa falida do grupo Marialva e de outras 10 empresas era repassado por meio de honorários acima dos estipulados pela legislação aos administradores judiciais em contas de "laranjas", pessoas próximas ao ex-juiz.

A maior parte da bolada retornava para o então juiz, segundo o relatório. De acordo com a Corte, os administradores de massas falidas eram "pessoas íntimas" e sem qualificação para a função.

Procurado pelo UOL, o juiz Flávio Prado não foi encontrado. Em 2013, o então juiz pediu transferência da comarca de Teófilo Otoni, onde atuava, sob a alegação de que estaria sendo ameaçado por uma quadrilha de traficantes incomodada com suas decisões judiciais. Apesar de estar proibido de exercer o cargo de juiz (pena máxima aplicada aos magistrados), o juiz continua recebendo salário em torno de R$ 20 mil.

A história de Kretli não é um caso isolado. Aprovada em 2005 pelo Congresso na tentativa de evitar o fechamento de grandes companhias, a Lei das Falências (nº 11.101/95) acabou motivando a criação de vários balcões de negócios controlados por grupos seletos de advogados e de juízes no país.

Juiz tem poder de decidir quantia e destino de ativo recuperado

Denunciada principalmente por credores, a atividade vem resultando nas condenações de juízes e no afastamento de advogados nomeados administradores de massas falidas.

Um negócio altamente lucrativo, levando em conta que o administrador judicial recebe de 2% a 5% do ativo recuperado de cada empresa. Quem define o valor é o juiz de cada processo.

O detalhe fundamental é que o administrador tem prioridade para receber os recursos da massa falida. Quem acaba pagando a conta são os credores, principais interessados nos processos de liquidação e de falência que se arrastam na Justiça. Enquanto os administradores acumulam riquezas, os credores quase nunca conseguem receber a dívida que a empresa deixou em aberto.

Na semana passada, os problemas envolvendo processos de empresas falidas voltaram a movimentar os tribunais de Justiça de Minas. A Corte Especial do Tribunal determinou o afastamento por cinco anos do advogado Sérgio Mourão Côrrea da função de administrador judicial.

Ele foi afastado sob a acusação de ter desviado R$ 91 milhões dos ativos da massa falida do Consórcio Unialto-Lideralto, que teve sua falência decretada há 20 anos. O processo não foi concluído até hoje.

Credores ficam esperando ressarcimento

Vale lembrar que a maioria dos credores são assalariados e profissionais que reservavam parte de seus vencimentos todo mês para comprar um carnê de consórcio na esperança de adquirir um carro novo.

Enquanto esses trabalhadores aguardavam a devolução de suas economias que lhe foram retiradas de uma hora para outra, o escritório de Mourão, montado em parceria com seu pai, Osmar Brina (falecido há quase dois anos) não parava de receber vencimentos milionários ao ser nomeado, devido aos seus contatos no judiciário, para a gerir a massa falida de grandes empresas de Minas.

A exemplo do ex-juiz de Sete Lagoas, Mourão construiu um sólido patrimônio. Em sua página no Facebook, o advogado aparece montado em cavalos de raça e posa para fotos na varanda de um dos dois apartamentos que, segundo documentos obtidos pelo UOL, foram comprados em Manhattan, parte nobre de Nova York (EUA).

De acordo com documentos, parte da riqueza de Mourão teria como origem a massa falida do Banco Progresso, instituição financeira que desapareceu com o dinheiro de centenas de correntistas. Para administrar os ativos da massa falida do Banco Progresso, o escritório Mourão teria recebido, a título de honorários, R$ 30 milhões. Quem autoriza o pagamento e assina o recibo é o próprio pai de Mourão.

Em contrapartida, de acordo com a juíza da 1ª Vara Empresarial de Belo Horizonte, Cláudia Helena Batista, não é possível encerrar o processo devido à falta de recursos para pagar os credores. "Os ativos encontrados do banco não são suficientes para o pagamento dos credores", afirma a juíza.

Patrimônio restante de banco falido sumiu, aponta perita

Um relatório, assinado pela perita Fernanda Jupetipe, dá pistas de como o patrimônio que restou do Banco Progresso desapareceu. "Houve transferências bancárias em favor da massa falida no valor de R$ 1,8 milhão e retiradas no valor de R$ 1,7 milhão. Tais retiradas não são justificadas pelas despesas apresentadas do período, no valor de R$ 1,1 milhão. Sendo o valor deduzido da conta superior a tais despesas no montante de R$ 517 mil", mostra trecho do relatório analisado pelo UOL.

Em outra frente de investigação, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de MG investiga a denúncia de que Mourão teria sido conivente com os desvios de equipamentos da Probank, massa falida sob sua responsabilidade, para a Transat, empresa contratada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para fornecer dados das urnas eletrônicas em todo o país.

As investigações apontam que as duas empresas pertencem a um mesmo grupo empresarial.

Procurado pelo UOL, Mourão disse que vai provar sua inocência nas instâncias superiores de Brasília. Ele nega as acusações e diz que sempre atuou na defesa dos interesses dos credores. Ele afirmou que foi ele quem denunciou os desvios dos equipamentos Probank para a Transat.

CPI das Falências no Paraná desmontou quadrilha

Para o conselheiro do Tribunal de Contas do Paraná, Fábio Camargo, ex-deputado estadual, que presidiu a CPI das Falências em 2011, na Assembleia Legislativa do Paraná, casos como esse acontecem devido à falta de preparo dos administradores e a um esquema organizado de corrupção.

"Não há especialização e preparo técnico dos administradores judiciais que são livremente nomeados pelo juiz. No Paraná constatamos a existência de um verdadeiro clube de administradores judiciais e advogados que se alternavam em posições, ora como advogado do falido (devedor) ora como administrador judicial e concentraram e dominavam os procedimentos falimentares no estado", disse Camargo.

Após investigar as denúncias da CPI, a Corregedoria de Justiça do Paraná fez um relatório no qual propõe medidas para acabar com o esquema de corrupção. Entre as propostas está criação, após a realização de compliance (checagem de procedimentos), de um cadastro de administradores e síndicos de massa falida.

"No Paraná, conseguimos pôr fim a um monopólio de uma família que respondia pela massa falida de mais de 200 empresas paranaenses, como a Hermes Macedo, com lojas em todo país", afirmou o conselheiro.

De acordo com o deputado, a Corregedoria Geral de Justiça, motivada pelas investigações da CPI, substituiu juízes e determinou o afastamento de administradores declarados inidôneos.