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André Santana

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

#BBB22: Natália errou, nenhum povo tem aptidão para ser escravo

Natália BBB 22: mineira naturalizou escravização de negros por serem fortes e eficientes - Reprodução/Gloplay
Natália BBB 22: mineira naturalizou escravização de negros por serem fortes e eficientes Imagem: Reprodução/Gloplay

Colunista do UOL

19/01/2022 12h50

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A 22ª edição do Big Brother Brasil estreou nesta segunda-feira, 17, provando que o reality continua com grande potencial de audiência e repercussão.

Além da disputa pela permanência na casa, as falas e posicionamentos dos participantes pautam as discussões públicas, com enorme engajamento, especialmente nas redes sociais.

Entre os temas mais recorrentes nas últimas edições do programa estão o racismo e as relações raciais, que mais uma vez ganharam destaque nas primeiras conversas entre os confinados.

A maior presença de participantes negros - nesta edição são 9 - tem provocado importantes debates que revelam o quanto o país ainda precisa se esforçar para compreender a complexidade da questão racial, que é estruturante da sociedade brasileira e explicam nossas desigualdades e mazelas.

Um comentário equivocado sobre o processo de escravidão, feito pela mineira Natália Deodato, 22, no primeiro dia do programa, possibilitou intensas discussões sobre o perigo da naturalização das violências provocadas pelo racismo.

Aceitação da divisão racista do trabalho

"Sou preta. Realmente tem a história que a gente veio e viemos como escravos, sim. Por quê? Porque a gente era eficiente. Por quê? Porque a gente era forte. Por que é que a gente veio como escravo? Porque a gente era bom no que a gente fazia. Por isso, porque talvez se colocasse uma pessoa lá pra fazer aquilo, talvez não conseguiria.", Natália, participante do BBB22

É possível enxergar alguma boa intenção na fala de Natália. Talvez uma tentativa de valorização dos africanos vítimas da escravização europeia.

Poderia até ser uma resposta ao racismo pseudocientífico que inferiorizou os povos negros para legitimar o processo de escravidão.

Mas soou como aceitação da lógica racista de que a população negra era a mais propícia para desempenhar o trabalho forçado que sustentou o colonialismo.

A fala de Natália reforça a justificativa da divisão racial do trabalho, que ainda permite as condições mais desumanas e os serviços menos valorizados aos negros e negras, pois estes suportariam mais a carga pesada da exploração.

Como mulher negra, a própria Natália deve saber o peso que é ser considerada 'forte' e 'resistente' e, portanto, apta a suportar todas as violências cotidianas, a exploração no trabalho, o descaso social e a solidão afetiva. Para ficar em apenas um exemplo das consequências danosas desta suposta resistência à dor, 65,9% das mulheres que sofrem violência obstétrica no país são negras e 66,4% das mulheres que morreram em 2019 por causas obstétricas eram negras.

Conforme publicou em novembro a colunista do UOL Larissa Cassiano, "não há mais espaço para violência obstétrica contra mulheres negras".

Sistema colonial transformou africanos em mão de obra forçada

Uma das explicações para a permanência e aceitação do racismo é a sua capacidade de apagamento da historicidade dos fatos, tornando como 'naturais' ou 'normais' ideias artificialmente criadas para justificar dominações.

O sistema colonial, criado pela modernidade, fez a separação entre a razão e a emoção, hierarquizando o pensamento e o corpo e definindo o primeiro como superior.

Destituídos de racionalidade e inteligência, os africanos e seus descendentes foram resumidos à mão de obra. Tudo com aval da religião, que não encontrou alma naqueles corpos, e da ciência que viu como atraso os hábitos, saberes e culturas diferentes do que se praticava na Europa.

Então, Natália, a escravidão, ao contrário do que você pensa e disse, considerou os africanos inferiores e não mais eficientes ou bons no que faziam.

A diversidade de povos no imenso continente africano representava uma diversidade de organizações sociais, políticas e relações de trabalho, com grupos mais voltados à agricultura, outros à pesca, à caça, ao comércio, alguns nômades e outros em estágio de isolamento. A escravidão tentou homogeneizar em uma única massa de função laboral para a engrenagem capitalista que se projetava.

Se o trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar ou na extração de minérios no território brasileiro foi desempenhado pelos negros de forma satisfatória para a economia colonial, isso se deu pelo julgo do açoite e por uma infinidade de violências físicas registradas em todo período de escravidão.

Europeus podem desempenhar trabalhos físicos

Se a história do Brasil fosse realmente estudada nas escolas para além da perspectiva eurocêntrica, os brasileiros saberiam que povo algum poderia ter aptidão natural para vivenciar os horrores do tráfico negreiro.

Até hoje é recorrente no imaginário racista brasileiro a ideia de que os corpos negros são eficientes para os trabalhos mais árduos, que exigem a força e a resistência, por vezes, não humana.

Como condição de sobrevivência, o trabalho da escravidão poderia ser realizado por qualquer povo que, com o chicote no lombo, fosse obrigado.

Prova disso é o desempenho dos imigrantes europeus no Brasil, que a partir do século 19 foram estimulados por uma espécie de política de ação afirmativa de Estado que visava o branqueamento racial da população brasileira em substituição aos povos originários e os descendentes de africanos.

Dispensados das fábricas após a Revolução Industrial - que provocou a substituição dos trabalhadores por máquinas - e fugindo de conflitos étnicos e religiosos, os imigrantes europeus mostraram que tinham força e resistência para o árduo trabalho no território brasileiro.

Se ao invés de convidados fossem sequestrados e tivessem feito a travessia em navios tumbeiros talvez os europeus e seus descendentes demonstrassem a mesma resistência dos povos africanos. E hoje estariam desempenhando com mais desenvoltura serviços destinados quase exclusivamente aos descendentes da África.

Não estaríamos aceitando a lógica colonial que ainda impera de negros como serviçais e brancos como senhores.

A rejeição à fala de Natália, principalmente pelas pessoas pretas, sinaliza que essa separação racista do trabalho não faz mais sentido em uma sociedade que tenta romper o pacto colonial da escravidão.