André Santana

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Reportagem

Pesquisadora analisa em livro audiências de custódia: 'Lógica punitivista'

As audiências de custódia são a porta de entrada para o encarceramento em massa de pessoas negras e seguem uma lógica punitivista e colonial de sequestro de direitos. Esta é a conclusão do trabalho de campo realizado pela pesquisadora Carla Akotirene, que acaba de lançar o livro "É fragrante fojado dôtor vossa excelência".

Este é o primeiro estudo acadêmico sobre as audiências de custódia, implantadas no Brasil em 2015, com o intuito de ser um instrumento para avaliar eventuais ocorrências de tortura, maus-tratos, abusos físicos ou psicológicos, entre outras arbitrariedades na ação policial durante as prisões.

A pessoa presa em flagrante tem o direito a ser apresentada, até 24 horas da prisão, a um juiz ou juíza, em uma audiência com a presença do Ministério Público e do próprio advogado ou de um defensor público para que relate as circunstâncias da prisão. O juiz analisa, então, a prisão sob o aspecto da legalidade e a regularidade do flagrante, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão, de se aplicar alguma medida cautelar, ou até da eventual concessão de liberdade.

As audiências encontram respaldo, inclusive, em instrumentos internacionais aos quais o Brasil é signatário como a Convenção Americana de Direitos Humanos, o chamado Pacto de San José da Costa Rica, assinado em 1969.

Ninguém grita 'pega o racista'

Carla explica que sua pesquisa comprova que desde a prisão as desigualdades raciais se evidenciam já que pessoas pretas são destituídas dos requisitos da realidade capitalista - incutidos em frases como "Você sabe com quem está falando?" ou "Vou ligar para o seu comandante" - tão comuns em flagrantes realizados em locais de moradia dos ricos, com o comportamento cordial dos agentes.

"Há uma consciência coletiva no 'pega o ladrão' de que há um dano a toda a sociedade. Ninguém grita 'pega o racista', pois não há consciência do risco à ordem pública", diferencia Akotirene.

O local de investigação do trabalho de campo foi a Vara de Audiência de Custódia, em Salvador (BA), na qual Akotirene teve acesso aos documentos produzidos sobre os flagrantes desde 2016, além de assistir presencialmente a dezenas de audiências no ano de 2019.

A autora conta que no dia a dia do tribunal, entre os relatos de flagrantes forjados e o drama de familiares e comunidades, sentiu na pele a rigidez com a qual tratam as pesquisadoras formadas pelas militâncias em direitos humanos e antirracismos.

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"Sem acompanhar as rotinas, o vai e vem da papelada burocrática, a destreza retórica do juridiquês, acabamos por ignorar os tentáculos do Estado nas audiências de custódia e suas práticas para administrar vidas na lógica do biopoder, que nos fala Foucault", conceitua.

Carla Akotirene, escritora e ativista acadêmica antirracista
Carla Akotirene, escritora e ativista acadêmica antirracista Imagem: Pedro Moraes / Sepromi

A palavra oral do preso contra a escrita do policial

O que deveria ser um instrumento para inibir as arbitrariedades nas prisões tem, na verdade, sido um instrumento para demonstrar mais violações de direitos no sistema de justiça. No livro, Akotirene apresenta as audiências de custódia como 'cenas coloniais', nas quais atores e atrizes jurídicos - juízes, defensores públicos, procuradores e policiais -, performam como se seguissem um ritual pré estabelecido pela ordem escravocrata.

"Nessas cenas coloniais, senhores brancos arbitram sobre vidas negras, pressionados pela visão punitivista e pela opinião pública e midiática sobre a legalidade das prisões. É a palavra oral do preso contra a escrita do polícia executor da prisão em flagrante, conferido de fé pública, pois representa uma instituição, a polícia", diz.

A pesquisadora também analisa o perfil racial e social daqueles que tiveram a liberdade decretada ou as prisões relaxadas, com o uso das tornozeleiras eletrônicas, uma economia financiada pelo Estado que estigmatiza os jovens negros nas comunidades, "pois ninguém faz a diferença de quem foi pego com um baseado ou cometeu cárcere privado".

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Realidade linguística

"É fragrante fojado dôtor vossa excelência" é publicado pela Editora Civilização Brasileira e traz no título uma alusão ao racismo linguístico do sistema de justiça. "Sem conhecer seus direitos e entender o juridiguês, o jovem fica a mercês dos diálogos entre os atores jurídicos, que riem do seu linguajar e confiam em provas plantadas, ou seja, flagrantes forjados", denuncia a intelectual.

O que o policial vai ganhar mentindo? "Além do incentivo de produtividade, atendendo à política de guerra às drogas. Há um alinhamento com programas televisivos policialescos para a promoção da imagem", coloca.

Akotirene afirma esperar que esta obra, assim como seus outros livros, contribua para a formulação de políticas públicas, como a imediata colocação de câmeras de monitoramento no fardamento dos policiais.

"Libertar a população negra do encarceramento em massa deve ser encarado como um dos maiores desafios do abolicionismo contemporâneo, que representará, em um futuro breve, o fim das 'cenas coloniais' e a superação da ordem segregadora na sociedade brasileira", diz.

'É fragrante fojado dôtor vossa excelência' de Carla Akotirene foi lançado nesta quarta-feira, 28, na Academia de Letras da Bahia
'É fragrante fojado dôtor vossa excelência' de Carla Akotirene foi lançado nesta quarta-feira, 28, na Academia de Letras da Bahia Imagem: Pedro Moraes

Seis anos de trabalho de campo

Carla Akotirene é uma ativista acadêmica, como se autodefine. O livro recém-lançado é a continuidade dos estudos da pesquisadora, que passou seis anos investigando as audiências de custódia para a formulação da sua tese de doutorado, defendida na Universidade Federal da Bahia (UFBA). "O Estado penal ainda valida o aprisionamento como a única alternativa da ética moderna jurisprudente", diz.

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"A prisão é o próprio racismo e o racismo é colonial"
Carla Akotirene

Na obra, Akotirene cumpre os rigores da investigação científica, embasada em pesquisa etnográfica, acesso a documentos e diálogo com referências do campo do direito, da filosofia e das ciências humanas, associadas aos seus mais de 20 anos de militância e estudos para entender o funcionamento do aprisionamento em massa de pessoas negras.

Formada em Serviço Social, com atual profissional na saúde pública, ela é autora de 'Interseccionalidade' (2019, Editora Pólen) e 'Ó pa í, prezada: racismo e sexismo institucionais tomando bonde nas penitenciárias femininas' (2020, Pólen), este último fruto da sua dissertação de mestrado na UFBA.

A mais recente pesquisa etnográfica de Akotirene é realizada ancorada na ferramenta epistemológica da interseccionalidade, que cruza os marcadores de opressões de raça, gênero e classe, e na cosmopercepção africana.

"Nas filosofias dos bantos e dos iorubas, Xangô é o deus da justiça, que usa todos os sentidos e enxerga todo o processo. Diferente da justiça de Themis, a deusa grega de olhos vendados, Xangô tudo vê e toma partido para combater a injustiça. A imparcialidade é uma injustiça", define.

A autora explica que nesta epistemologia de Xangô, se há um delito, toda a comunidade é punida para que cada um pense sua responsabilidade na ocorrência, diferente do sistema de justiça que busca a individuação das penas, na lógica da fala policial do "alguém vai ter que assumir isso aqui?".

Carla traz o exemplo dos casos de racismo ocorrido em estabelecimentos comerciais. "Demitem o segurança do mercado e não responsabilizam os proprietários que não prepararam seus funcionários para não agirem daquela forma".

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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