Direita vence em Portugal com racismo e xenofobia que a esquerda não barrou
Um governo de centro-direita ocupou o poder em Portugal com a posse na terça (3) do primeiro-ministro Luís Montenegro, 51, do Partido Social Democrata (PSD). Ele substitui António Costa, do Partido Socialista (PS), que, mesmo realizando uma gestão considerada de esquerda, não conseguiu barrar a onda de xenofobia e racismo, bem como o avanço da extrema-direita.
Em seu discurso de posse, o novo primeiro-ministro abordou a imigração, tema em destaque na campanha, e disse que quer "um país humanista e acolhedor, que não está nem de portas fechadas nem de portas escancaradas para a imigração".
Montenegro afirmou que a imigração tem de ser regulada, atrativa para profissionais qualificados, proativa com os jovens estudantes e capaz de reunir famílias, melhorando a sua integração à comunidade.
"Os portugueses querem que zelemos pela sua segurança e dos seus bens", disse o premiê, dialogando com a ideia disseminada pela extrema-direita que acusa a imigração pela insegurança no país.
Em entrevista à coluna, a doutora em sociologia e investigadora do ISCTE (Instituto Universitário de Lisboa) Cristina Roldão analisa que o resultado das últimas eleições no país gerou um cenário de turbulência governativa com uma "guinada geral à direita e o robustecimento das forças antidemocráticas".
"A representatividade feminina regrediu aos números de 2015 e o Chega tornou-se o partido com mais deputados racializados na Assembleia da República (...). O Chega, que elogia o salazarismo, escarnece da igualdade de gênero e acicata o racismo e a xenofobia, tornou-se a terceira força política", ressaltou a pensadora. Entre os deputados do Chega estão o moçambicano Gabriel Mithá Ribeiro e o brasileiro Marcus Santos
Esquerda não rompeu com racismo e xenofobia
Segundo Roldão, em Portugal, os partidos que querem confrontar os argumentos anti-imigração da extrema-direita o fazem de uma maneira complexa e problemática justamente porque pregam que o país deve receber imigrantes somente se estes forem trabalhar, contribuir e seguir as regras da sociedade portuguesa.
A narrativa é aquela 'você pode conviver com a gente se seguir as nossas regras'. Isso obviamente é uma relação de poder que evidencia como o racismo à portuguesa e a ideia do assimilacionismo funcionam.
Cristina Roldão, socióloga portuguesa
Contudo, Roldão alerta que, antes mesmo da presença do partido de extrema-direita na Assembleia Nacional, o discurso xenofóbico e racista já existia na sociedade portuguesa e a esquerda não priorizou resolver o problema. "Poderia ter avançado mais e não o fez", diz.
A pesquisadora, que nasceu em Portugal, filha de uma mãe cabo-verdiana e um pai português, cresceu em um bairro negro de Lisboa, formado por famílias africanas. Ela escreve desde 2019 no jornal Público, um dos mais relevantes da imprensa portuguesa, sobre os temas dos direitos humanos, combate ao racismo e a situação dos imigrantes.
Roldão também explica que a situação da xenofobia se sustenta na ideia do fim da população branca na Europa. "É uma teoria de que a crescente imigração vai, no sentido biológico e cultural, acabar com a população branca. É um discurso que a extrema-direita tem usado muito", aponta.
Xenofobia contra imigrantes brasileiros cresceu mais de 500%
O tema é muito caro para a comunidade brasileira que reside oficialmente em Portugal. Em 2023, essa população chegou a quase 400 mil pessoas, de acordo com o SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), sendo o maior contingente entre os imigrantes de lá.
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Quero receberEles, que foram em busca de qualidade de vida, trabalho e segurança, encontram também nas terras lusitanas um forte discurso anti-imigração, falas xenofóbicas e atitudes racistas. No ano passado, segundo dados da Comissão para Igualdade e Contra a Discriminação Racial do Governo de Portugal, as denúncias de xenofobia contra imigrantes brasileiros cresceram mais de 500% em relação a 2022.
Diante disso, são cada vez mais comuns as notícias de brasileiros sendo humilhados no país europeu, em especial as mulheres, com flagrantes filmados e compartilhados nas redes sociais.
O mesmo acontece com os imigrantes de outras nacionalidades e também os ciganos portugueses. Soma-se aos casos de xenofobia a violência policial no país, especialmente nas comunidades de maioria negra, como os bairros na periferia habitados por imigrantes de origem africana e seus descendentes nascidos em Portugal. Tal qual o Brasil, os jovens negros são os principais alvos da brutalidade policial por lá.
Confusão entre racismo e xenofobia para despolitizar o problema
Diferente do Brasil, que nos últimos anos e, especialmente no governo Bolsonaro, explicitou os discursos discriminatórios contra negros, indígenas e nordestinos de forma desvelada e agressiva, Cristina Roldão diz que, em Portugal, apesar do racismo e preconceito serem evidentes, ainda são mascarados. "É uma narrativa que prega que não é contra toda a imigração, mas contra a imigração desregulada, ou seja, pessoas que vêm pra cá e não querem trabalhar".
Ela também cita que os portugueses acreditam que o colonialismo português foi brando no Brasil e nas colônias africanas. Ou seja, uma colonização de mestiçagem, valendo-se da teoria do lusotropicalismo, que destaca a empatia, proximidade e até afeição que os colonizadores portugueses demonstravam perante os colonizados: o antiquado mito da democracia racial difundido no Brasil pelo autor Gilberto Freyre, da obra Casa Grande e Senzala (1933).
É uma narrativa que apareceu no Brasil por volta dos anos 1940 e foi adotada pelos portugueses nos anos 1950. Começaram a apresentar Portugal como um país multiracial e pluricontinental e isso foi dando forma ao racismo à portuguesa.
Cristina Roldão
Na opinião da pesquisadora, em Portugal também há uma certa confusão entre racismo e xenofobia, ou racismo e integração de imigrantes, que dilui a questão racial e passa a ser uma discussão sobre recém-chegados ou dos contrastes entre culturas. "Há uma despolitização muito grande do problema", afirma.
Para Roldão, o Partido Socialista poderia ter avançado mais e não o fez, a partir do Plano Nacional de Combate ao Racismo, implantado com muita pressão dos movimentos sociais e um contexto internacional favorável pela campanha Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), além de mobilizações na sociedade portuguesa, do movimento antirracista negro e cigano.
"O PS não rompeu com programas segregacionistas há muito criticados, como as políticas de habitação e de segurança pública", elenca.
Ela lembra que políticos do PS condenavam em seus discursos a ideia de culpabilização. "Esta é uma narrativa lusotropicalista, que não quer reconhecer a responsabilidade histórica de ter que reparar, muitas vezes entendendo o combate ao racismo como algo para ajudar as minorias, e não como um plano para reparar uma sociedade que tem desigualdades. Isto não se trata de assistencialismo", defende.
Revolução democrática completa 50 anos
Em 25 de abril deste ano, Portugal celebrará os 50 anos da Revolução dos Cravos, um marco para a democracia do país. Em 1974, os movimentos sociais e populares e forças democráticas impuseram o fim do regime ditatorial do Estado Novo, implantado desde 1933, com muitas restrições à liberdade e à cidadania.
"Que os múltiplos eventos e atividades previstas para essa comemoração possam ser menos sobre o que foi feito e mais sobre o que há a fazer para concretizar o 25 de abril. Que possamos contribuir para o reacender do compromisso de luta contra as forças regressivas deste país e não arredar o pé de o continuar a democratizar, descolonizar e desenvolver", espera Cristina Roldão.
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