André Santana

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Opinião

BBB24: Conflito Davi x Leidy e Buda freia avanços no debate racial

Barracos entre Leidy e Davi só interessam ao racismo. Não é para assistir à briga entre dois jovens pretos, da periferia do Brasil, sob o olhar protegido e sorriso satisfeito da famosa, que tantas pessoas lutam diariamente contra o racismo e todas as formas de desumanização de pessoas negras neste país.

Mais uma vez, o programa Big Brother Brasil da Rede Globo nos provoca a refletir sobre as relações raciais no Brasil, nos servindo de reflexo sobre o quanto caminhamos no enfrentamento ao racismo e do muito o que ainda temos de obstáculos pela frente.

Nesta edição de 2024, chama atenção o destaque inédito a um jovem preto retinto e a exposição do ódio despertado em pessoas brancas pela coragem dele em se posicionar no jogo e não fugir de brigas.

Post sobre a triste representação da briga entre Leiyd e Davi que só interessa ao racismo
Post sobre a triste representação da briga entre Leiyd e Davi que só interessa ao racismo Imagem: Reprodução X

O até então desconhecido Davi se tornou o protagonista do programa e suas maiores adversárias, as famosas Wanessa Camargo e Yasmin Brunet, receberam a solidariedade de quase todos os participantes da casa, brancos e pretos, camarotes e pipocas.

Na ânsia em defender as supostas ameaçadas pelo ímpeto de Davi e estimulados pelos discursos de sofrimentos e gatilhos sofridos por elas, os demais participantes passaram também a odiar o jovem.

Chamam atenção, no comportamento aguerrido de proteção delas, Leidy Elin e Lucas Henrique, o Buda. Negros como Davi, sem fama e sem dinheiro como ele, os dois revelam possuir ferramentas essenciais para a sobrevivência em meio às disputas raciais permanentes neste país de passado escravocratas e que não quer se livrar das suas estruturas coloniais.

Leidy é destemida, ousada e não leva desaforo, o que a deve proteger de violências e silenciamentos tão comuns contra mulheres negras. Já Buda tem o que hoje se chama 'letramento racial', ou seja, fez leituras e recebeu formação sobre a estrutura racista da sociedade e as consequentes desigualdades geradas.

O problema é que, no programa, ambos resolveram direcionar suas armas, que poderiam subverter a lógica de privilégios raciais que são reproduzidos pela televisão, contra Davi, justamente o cara que possui o perfil para se tornar alvo principal do racismo da sociedade mantido pelo reality.

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As disputas entre Davi e Buda e os acirrados bate-boca entre o baiano e Leidy, além de elevar a audiência do programa e o engajamento nas redes sociais, expõem de forma dolorosa contradições que precisamos superar na construção da dignidade das pessoas negras tão violentadas pelo racismo.

Três crias da periferia se duelando

Os três são "crias" de comunidades da periferia negra do Brasil e enfrentam todas as barreiras impostas a jovens negros que buscam contrariar a baixa expectativa em relação aos seus futuros:

Davi, 21 anos, é correria, como são chamados na Bahia aqueles que se viram de toda forma em busca do sustento e, entre as muitas atividades, é motorista de aplicativo em Salvador. Ele é de Cajazeiras, um dos maiores bairros de Salvador, afastado do Centro, dos atrativos turísticos e das prioridades de investimentos públicos da cidade. Buda tem 30 anos, é professor de história, capoeirista e educador social no Complexo da Maré uma das maiores favelas do Rio de Janeiro e Leidy, 26 anos, é trancista e operadora de caixa do Morro do Feijão, em São Gonçalo, também Rio de Janeiro.

BBB 24: os cariocas Lucas Buda e Leidy Lin
BBB 24: os cariocas Lucas Buda e Leidy Lin Imagem: Reprodução/Globoplay

Os participantes do BBB24, cada um a seu modo, nos mostram que ainda temos muito a caminhar, não só na desconstrução dos mecanismos que mantêm hierarquias raciais, mas principalmente na difusão da consciência negra para cada vez mais pessoas que sentem na pele as dores do racismo e ainda não entendem essas violências e como combatê-las. E o papel fundamental da luta coletiva.

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Falta se libertar da escravidão mental

Uma das maiores barreiras a ser transposta é aquilo que Bob Marley cantou na música Redemption Song, cujos versos conclama: "Emancipem-se da escravidão mental. Ninguém além de nós mesmos pode libertar nossa mente".

O desafio da escravidão mental é a reconstrução da autoestima deteriorada pelas narrativas racistas, o reconhecimento do seu próprio potencial, da autonomia diante de figuras caridosas e a aceitação da sua imagem e, portanto, daqueles que se parecem, sua família, sua comunidade e todas as pessoas que enfrentam as mesmas dificuldades.

Poderia ser simples, mas como vemos mais uma vez no Big Brother Brasil é mais fácil repudiar os semelhantes em nome da admiração pela imagem que aprendeu a reconhecer como a ideal, a mais bela e mais digna de todo respeito e cuidado.

Só assim para explicar a defesa das participantes ricas e famosas por parte daqueles que formam os chamados pipocas, especialmente Leidy e Buda, que tomaram as dores, defendendo as duas contra Davi. Os famosos de origens periféricas, como MC Bin Laden, ou marcados racialmente, como Rodriguinho, seguem a mesma idealização.

A postura aguerrida de Davi, que não se importa em ter conflitos com os famosos do camarote e suas legiões de fãs fez com que o baiano repudiasse comportamentos arrogantes de quem não está acostumado a conviver em igualdade com pessoas pretas e pobres.

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Estranho como esse comportamento não desperta o mínimo de empatia daqueles que vivem realidades muito parecidas. O medo da rejeição por parte do fadom explica em parte tais atitudes conciliadoras. Mas quando se vê a postura violenta de Leidy contra Davi não se pode considerá-la medrosa. Coragem e ousadia ela tem bastante, resta saber em qual direção são utilizadas essas armas.

Davi e Leidy repetem conflitos de Lucas e Lumena

A postura 'empoderada' de Leidy é muito semelhante à trajetória de Lumena do BBB21 e à agressividade contra o participante Lucas Penteado. O ator, mais politizado sobre as relações raciais, ou seja, com mais letramento racial do que Davi, sugeriu uma união entre os negros como uma forma de fortalecimento diante dos privilégios dos brancos.

Uma afronta ao ideal de democracia racial ilusoriamente propagado no Brasil. Como já escrevemos aqui, a democracia racial é um mito atrelado à ideia de que a cordialidade brasileira possibilitaria harmonia e igualdade para brancos e negros. Contrário a essa ilusão e conhecedor da realidade, Lucas propôs uma união, tal qual fizeram os quilombos, essenciais para manter os sonhos de liberdade dos negros.

Bastou isso para ele ser condenado por outros participantes daquela edição, inclusive os pretos Nego Di e Lumena. Ela, uma psicóloga, com leituras sobre racismo e desigualdades raciais, forjada na militância negra e na arte dos blocos afro da Bahia, se colocou totalmente contra Lucas, mesmo quando ele foi alvo das mais pesadas violências por parte da rapper Karol Conká, que indignou o Brasil e mobilizou uma rejeição recorde no programa (99,17% dos votos pela eliminação).

Na época, escrevemos aqui na coluna como a Lumena virou exemplo de uma militância arrogante, egoísta, sem empatia e acolhimento, ao distorcer ensinamentos que dizia ter recebido no movimento negro.

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Relembre aqui: Por o que Lumena poderia ter militado, mas não o fez

BBB 21: Lumena diz para Lucas que ela não é palco para ele
BBB 21: Lumena diz para Lucas que ela não é palco para ele Imagem: Reprodução/ Globoplay

Ficarão sem prêmio, sem público e sem os amigos ricos e famosos

Agora na edição 2024 do BBB, um dos primeiros embates de Buda com Davi foi justamente quando o motorista expressou em conversa que desejava ver a vitória de alguém que precisasse do valor do prêmio oferecido pelo programa, ou seja, os mais pobres. A fala de Davi foi interpretada como uma campanha contra os chamados camarotes e o 'pipoca' Buda tomou as dores dos famosos ricos contra Davi.

Lucas também não quis contrariar a narrativa criada pelo camarote Bin Laden de que o termo 'calabreso', utilizado por Davi, era gordofóbico. Buda sabia que se trata de uma expressão da internet nada ofensiva, mas não teve coragem de se indispor com os novos amigos ricos, que já tinham colocado o baiano como vilão preconceituoso.

O comportamento de Davi de se impor, não importa com quem, poderia entusiasmar os outros, que sabem o que é ser preto e pobre neste país, que deveriam encontrar em Davi uma representação daquilo pelo qual lutam no cotidiano.

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Davi não deita para camarote, sejam ricos ou branco, porque está focado no prêmio em dinheiro, que pode transformar sua vida, de sua família e possibilitar seus sonhos. Isso, sim, deveria ser inspiração para os outros que enfrentam no dia a dia e no programa aqueles que gozam de privilégios.

Ao contrário disso, Lucas e Leidy estão despertando a insatisfação do público, alguns até em exageradas reações de violência contra eles, expondo preconceitos incutidos contra pessoas com as origens deles.

Ao invés de levarem o prêmio e o carinho do público, ficarão sem o dinheiro, sem o reconhecimento das suas comunidades e sem amizade das famosas que tentam a todo custo defender e que, aqui fora, continuarão com seus privilégios herdados desde o berço.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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