Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Filmar tem sido reação da sociedade diante de Estado que tortura e mata
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Alguns dias se passaram da cena de tortura e morte de Genivaldo de Jesus Santos, em Umbaúba, Sergipe, e o Brasil continua sua rotina à espera do próximo corpo negro abatido.
Alguns protestos de familiares e organizações sociais, textos de repúdios, lágrimas de indignação. Mas nada que nos dê o mínimo de garantia de que haverá Justiça e, menos ainda, de que essa matança de gente preta terá fim.
O país segue imobilizado, com a mesma sensação de impotência daqueles populares que presenciaram a cena e alertavam à distância: "Vai matar o cara aí dentro".
Sem contar com o mínimo empenho dos poderes públicos, muitos outros cidadãos vão morrer pelas mãos do Estado, pelos métodos de tortura, pela bala institucionalizada e pela política de segurança pública a serviço do racismo e da necropolítica.
O crime ocorrido em Sergipe, no dia 25 de maio, enquanto ainda não sabíamos ao certo o número de mortos na última chacina na Vila Cruzeiro, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, não é um caso isolado. Revela um modus operandi.
Em relação à chacina, houve elogio e incentivo vindo do chefe do executivo nacional. No brutal assassinato de Genilvado, o silêncio do presidente da república grita a indiferença com a vida.
A violência policial no Brasil, que vitima preferencialmente pessoas pretas, tem tornado banais essas mortes, diminuído o assombro da sociedade com a interrupção dessas vidas e gerado desânimo com a possibilidade de alteração destas práticas de mortes.
Filmagem é única reação possível
Como último suspiro - não das vítimas, mas de vizinhos e familiares, a filmagem tem sido uma ferramenta importante para o registro desses crimes promovidos pelos agentes da segurança pública. Talvez seja a única reação possível de uma comunidade indefesa perante a brutalidade de um estado genocida.
Infelizmente, o registro não impediu a morte de Genivaldo. Nem a presença de populares ao redor, nem a quantidade de câmeras filmando, nem a agonia da vítima que não queria morrer. Nada freou o ímpeto dos policiais que pareciam imbuídos de uma missão dada pelo Estado Brasileiro: eliminar mais um corpo negro.
Mesmo insuficiente, a filmagem tem garantido certa repercussão e a confirmação das denúncias que historicamente comunidades pobres e movimentos sociais tentaram fazer.
A sociedade que venera as imagens em movimento confia na força testemunhal dos vídeos e garante sua ampla circulação.
Parece que somente agora, com gravações em vídeos e compartilhamentos nas redes sociais, parte da sociedade passou a acreditar no cotidiano de humilhações, agressões e mortes que pessoas pobres e pretas vivenciam neste país.
Se diante das câmeras e à luz do dia esses servidores públicos agem dessa forma, assusta imaginar o que não fazem na calada da noite, nas incursões em localidades esquecidas e abandonadas até pela possibilidade de um aparelho celular.
Deve ser por isso que governos de estados com alto índice de letalidade policial, como o Rio de Janeiro e a Bahia, resistem em incorporar as câmeras nas fardas dos agentes.
Somente agora, após a segunda chacina mais letal da história do Rio de Janeiro resultar em pelo menos 25 mortos, o Governo do Rio confirma uso de câmeras em uniformes da PM.
George Floyd: filmagem gerou repercussão pelo mundo
Há exatos dois anos, no mesmo 25 de maio, os registros feitos por populares possibilitaram que o mundo inteiro tivesse conhecimento do horror que foi a tortura e morte de George Floyd por policiais de Minneapolis, Estados Unidos.
As imagens do policial branco, sufocando com o próprio corpo até a morte aquele homem negro, que suplicava "não consigo respirar", gerou uma onda de protestos em cidades norte-americanas comparados somente às manifestações de 1968, após o assassinato do líder pelos direitos civis Martin Luther King.
As filmagens e toda repercussão midiática foram decisivas na condenação do policial e dos demais agentes envolvidos no assassinato George Floyd.
Além de ocupar as ruas dos Estados Unidos, a indignação ganhou espaços nos meios de comunicação e nos debates políticos, tendo importante repercussão nas eleições que garantiram a derrota de Trump, presidente de posições supremacistas, que minimizou o crime e criminalizou os protestos.
No Brasil, imagens semelhantes circulam na internet e nos telejornais, geram debates e até engajamento, mas não conseguem eliminar o negacionismo cínico dos que fingem duvidar do racismo. Além disso, não há punições exemplares e nem alteram condutas policiais.
Sem perspectiva de transformação, sem esperança de que terão suas próprias vidas preservadas por um Estado que se mostra por meio de armas e agentes fardados, resta à comunidade um único ato de reação: a filmagem do crime que se opera às suas vistas.
Assustados, os que presenciam a violência temem que qualquer atitude mais firme possa aumentar o grau de brutalidade e o número de vítimas.
Filmar é o mínimo que se pode fazer, mesmo que esses registros venham acompanhados de vozes desanimadas que sentenciam o já esperado: "Vão matar ele".
Mais uma vítima do racismo genocida do estado brasileiro.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.