Topo

André Santana

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que o termo neguinho, usado por Piquet sobre Hamilton, é racista

O ex-automobilista Nelson Piquet no GP de Interlagos em 2014 - Mark Thompson/Getty Images
O ex-automobilista Nelson Piquet no GP de Interlagos em 2014 Imagem: Mark Thompson/Getty Images

Colunista do UOL

28/06/2022 14h11

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Na cartilha bolsonarista, seguida à risca por seus apoiadores, estão termos considerados ofensivos para grupos historicamente discriminados como mulheres, negros, pessoas com deficiência e comunidades LGBTQIA+.

A tropa bolsonarista parece se esforçar ao máximo para utilizar as expressões que comprovam a adesão ao líder que, investido do cargo de autoridade máxima da nação, incentiva as práticas machistas, homofóbicas, capacitistas e racistas.

Quem acabou de elevar sua pontuação dentro da manada bolsonarista foi o ex-automobilista Nelson Piquet. Ao utilizar de forma pejorativa o termo "neguinho" para se referir ao heptacampeão Lewis Hamilton, Piquet mostrou dominar o vocabulário do presidente do qual se tornou chofer em uma vergonhosa exibição de caráter antidemocrático no 7 de Setembro de 2021.

Trocar o nome do principal atleta da Fórmula 1 na atualidade, além de desrespeito ao esporte que fez carreira, demonstra recalque diante da trajetória exitosa de Hamilton. Deve ser difícil admitir que nem ele próprio, nem seus privilegiados filhos conseguiram chegar perto do lugar alcançado pelo jovem negro britânico.

Além das vitórias nas pistas, Hamilton é um fenômeno de simpatia e engajamento social, cuja popularidade pode ser comparada somente a do brasileiro Ayrton Senna, outro atleta que a família Piquet nunca conseguiu superar.

Mas por que o termo 'neguinho' é racista?

Questionado pela coluna, o escritor Gabriel Nascimento, que é doutor em Letras pela USP (Universidade de São Paulo) e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia, explica que as palavras servem para sistemas de hierarquia, entre elas, as hierarquias raciais estruturadas pelo racismo.

Nascimento afirma que nem sempre o termo neguinho —de uso comum no interior da comunidade negra para demonstrar afeto— tem intenções racistas.

"Mas, quando se trata de pessoas negras públicas que conseguiram conquistar espaços muito importantes na vida, esses termos servem para diminuir as pessoas."

Com isso, um mesmo termo pode ter significados diferentes a depender do contexto e das intenções de quem utiliza. A resposta de Piquet era uma crítica direta à postura de Lewis Hamilton, logo não havia nenhuma intenção em elogiar ou demonstrar afeto pelo atleta.

O especialista diz que o termo utilizado é indexar, que significa o mesmo que colar o significado ao contexto —ou seja, uma palavra terá um significado diferente a cada contexto do diálogo.

A palavra neguinho, em ambientes profissionais e naquele contexto da entrevista serve para inferiorizar o status da pessoa, a condição de ser humano. Lewis Hamilton é um jovem ativista, que se identifica com as mais diversas causas, como a ecológica e o racismo. Referir-se a ele como neguinho é racismo porque ele deixa de ter nome."
Gabriel Nascimento, escritor

7.set.2021 - Jair Bolsonaro chega em evento do 7 de Setembro em um Rolls Royce dirigido por Piquet - FÁTIMA MEIRA/ESTADÃO CONTEÚDO - FÁTIMA MEIRA/ESTADÃO CONTEÚDO
7.set.2021 - Jair Bolsonaro chega em evento do 7 de Setembro em um Rolls Royce dirigido por Piquet
Imagem: FÁTIMA MEIRA/ESTADÃO CONTEÚDO

O professor destaca que, na entrevista, fica claro que Piquet lembra de outros nomes e cita-os, mas o único negro em questão, mesmo sendo um grande campeão mundial, tem seu nome "esquecido" e trocado por neguinho.

"O termo neguinho, que utilizamos no interior da comunidade negra de forma afetuosa, naquele contexto da entrevista serve para desidentificar o jovem campeão."

Em 2019, Gabriel Nascimento lançou Racismo Linguístico (editora Letramento), fruto das suas pesquisas sobre as complexidades da linguagem que estabelecem estruturas de desigualdades raciais.

"O racismo linguístico é uma plataforma teórica para entender como a língua está associada a determinados perfis de racialização."

Apesar de apoiar Hamilton, Gabriel Nascimento faz uma ressalva sobre a resposta dada pelo heptacampeão por meio das redes sociais. "Eu acho Hamilton bastante elegante. Essa mentalidade de Piquet é pouco arcaica, ela é mesmo moderna, porque o racismo é moderno. Mas entendo o artifício discursivo dele."

Apesar da luta das comunidades negras e da adesão de boa parte da sociedade que passou a entender o racismo e sua penetração nas mais diversas esferas da vida, inclusive na língua, posições negacionistas e de deslegitimação dessas reivindicações ainda estão presentes em nossa sociedade.

Especialmente no Brasil governado por um presidente que já comparou pessoas negras a animais, sugerindo que quilombolas são pesados em arroba.

Esses são os ensinamentos públicos do bolsonarismo que apoiadores como Piquet reproduzem sem constrangimento.