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André Santana

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Reforma Tributária não corrige desigualdades e sonegação, diz especialista

Vista do plenário da Câmara dos Deputados antes do início da votação do texto da Reforma Tributária, em Brasília - 6.jul.2023 - Cláudio Reis/Estadão Conteúdo
Vista do plenário da Câmara dos Deputados antes do início da votação do texto da Reforma Tributária, em Brasília Imagem: 6.jul.2023 - Cláudio Reis/Estadão Conteúdo

Coluna em UOL Notícias

08/07/2023 06h59

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"Se não combater a sonegação e tributar os mais ricos essa Reforma Tributária será inócua".

Essa é a avaliação do professor Hélio Santos, doutor em Administração pela USP (Universidade de São Paulo) sobre o projeto de Reforma Tributária, aprovado nesta quinta-feira, 6, pela Câmara dos Deputados e que segue para tramitação no Senado Federal.

Além de Hélio Santos, especialistas ouvidos pela coluna apontam o grave problema da desigualdade racial no sistema tributário brasileiro, que não será corrigido pela atual reforma. Para eles, pretos e pobres são cobrados de forma semelhante aos mais ricos, mas não são tratados de forma igualitária no acesso aos benefícios gerados pelos tributos.

"Essa reforma buscou apenas tornar o sistema mais eficiente e não mais justo e mais igualitário", aponta a doutora em Administração, Eliane Barbosa da Conceição, pesquisadora do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da FGV (Fundação Getúlio Vargas).

O governo Lula comemorou a aprovação da proposta que se arrasta por mais de três décadas no Congresso e que visa simplificar o pagamento de impostos no Brasil com a unificação de tributos, além da criação de três alíquotas: uma geral, outra reduzida e uma outra zero, destinada a itens como medicamentos e produtos da cesta básica.

Imposto pesa mais para os mais pobres

Para Hélio Santos, os negros, entre os mais pobres do país, ou mesmo quando atingem a classe média, são os que pagam mais no sistema tributário brasileiro. Seja de forma indireta, na compra de produtos ou serviços ou de forma direta, na cobrança do Imposto de Renda já descontado no contracheque dos trabalhadores.

"A carga de tributos que uma trabalhadora doméstica paga ao comprar um quilo de arroz é a mesma que um empresário rico paga ao comprar o mesmo quilo de arroz, sendo que proporcionalmente ela consome muito mais a renda dela com os impostos na compra de produtos ou serviços", explica Hélio Santos, que preside o Instituto Brasileiro da Diversidade (IBD) e é membro do Conselho da Oxfam Brasil.

A Oxfam é uma rede global que atua no combate às desigualdades e pela justiça social. A organização é uma das realizadoras do Ciclo de Debates 'Tributação Justa, Reparação Histórica', que acontecerá entre os dias 11 e 13 de julho, reunindo parlamentares e pesquisadores para discutir a desigualdade no sistema tributário brasileiro.

Durante o encontro será discutida a ideia de uma tributação justa com reparação histórica, que compreende que o país deve oferecer um tratamento tributário específico para as populações negras e indígenas, que apresentam uma capacidade menor de contribuição.

Essas populações foram "historicamente desumanizadas e ativamente perseguidas, primeiro pelo colonizador europeu e depois pelo próprio Estado brasileiro. Ainda hoje acumulam as consequências da expropriação, escravização e abandono estatal, além de sofrerem perseguições", justifica o Centro de Estudos em Justiça Econômica, Desigualdades e Reparação (CEJEDR), uma das organizações promotoras do debate sobre tributação justa e reparação.

"No momento dos deveres, do pagamento de impostos, a população negra é tratada nos mesmos parâmetros que a população branca. Porém, no acesso aos direitos, ao invés de bem-estar, o Estado brasileiro entrega à população negra exploração, perseguição, menosprezo e violência", Eliane Barbosa da Conceição.

Eliane Barbosa é professora de Administração Pública na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e coordenadora do CEJEDR.

Para a pesquisadora, a eliminação da desigualdade racial não foi um tema contemplado no projeto de Reforma Tributária, apesar da cobrança feita pela sociedade civil durante as audiências realizadas pela Câmara para discutir o tema. Ela própria participou da audiência pública com o tema "Reforma Tributária sob a perspectiva distributiva: aspectos sociais, gênero, raça e cashback", realizada em abril.

"Todos os representantes da sociedade presentes, mesmo as pessoas brancas, que eram maioria, pontuaram com firmeza que a reforma precisaria ser sensível à questão de raça. Ao fim, o substituto aprovado na Câmara até contempla gênero e deficiência, mas a pauta racial caiu", lamenta.

Na lista de produtos e serviços que terão taxação reduzida (alíquota de 60%) estão dispositivos médicos e de acessibilidade para pessoas com deficiência e medicamentos e produtos de cuidados básicos à saúde menstrual, uma demanda do movimento de mulheres.

Desigualdade tributária é histórica

Hélio Santos reforça que o sistema de tributação no Brasil é historicamente desigual, beneficiando a branquitude em detrimento da população negra.

Ele explica que, passados os anos de escravidão e colonialismo, ainda hoje uma pessoa negra, para consegui uma estabilidade financeira, enfrenta vários obstáculos colocados pelo racismo e ainda precisa ajudar familiares com as mesmas dificuldades econômicas. Diferentemente de pessoas brancas, que além de beneficiadas pela estrutura racista do país, ainda recebem heranças deixadas pelos pais, avós ou tios.

"Se a pobreza tem cor e a riqueza também, não é justo cobrar tributos de brancos e negros da mesma forma. Partimos de lugares bem diferentes", Hélio Santos.

Hélio Santos lançou o ano passado o livro "A Resistência Negra ao Projeto de Exclusão Racial - Brasil 200 anos (1822-2022)", reunindo o pensamento de 34 personalidades de diferentes segmentos para refletir sobre o racismo sistêmico e propor estratégias para a equidade racial.

"A população negra, que representa 56% dos brasileiros, está na base da pirâmide social e acaba pagando proporcionalmente mais tributos do que as parcelas mais ricas e brancas desse país", aponta Eliane Barbosa. Para ela, o Brasil precisa avançar muito neste debate: "É o início de uma agenda de luta pela igualdade racial na tributação".

Cobrança será no destino e não na origem

Para o economista Elias Sampaio, doutor em Administração pela Universidade Federal da Bahia, a mudança trazida pela Reforma Tributária, que desloca a cobrança do imposto da origem (onde a mercadoria é produzida) para o destino (onde é consumida) tornará ainda mais evidente o peso das desigualdades regionais e raciais no sistema tributário.

"Os níveis de concentração de renda e as desigualdades raciais são diferentes no território brasileiro. Nessa nova forma de cobrança, a composição racial e as desigualdades dos estados ou municípios passam a ser ainda mais relevantes", aponta.

"A tributação não é neutra e sempre foi mais pesada sobre nós, negros. Não é possível pensar um sistema tributário justo sem contemplar o recorte racial, que é o que define todo processo de desigualdade", Elias Sampaio, economista e conselheiro do Fundo Baobá para a Equidade Racial.

Elias Sampaio e Eliane Barbosa também participam do Ciclo de Debates sobre Tributação Justa, Reparação Histórica, que ainda terá o senador Paulo Paim (PT/RS), as deputadas federais Talíria Petrone (Psol/RJ), Reginete Bispo (PT/RS), Dandara Tonantzin (PT/RS), entre outros especialistas de universidades e organizações sociais.

Falta combate à sonegação e taxação de grandes fortunas

Uma das formas de tentar resolver essa desigualdade tributária, de acordo com Hélio Santos, seria enfrentar o maior problema de tributação que é a sonegação de impostos pelos mais ricos.

"O pobre não tem como sonegar, pois já paga os impostos indiretamente na compra de produtos. Acontece que não há garantia que esse imposto pago será repassado por quem recebe", questiona Hélio.

De acordo com o placar Sonegômetro, criado pelo Sindicato dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz), o prejuízo do Brasil com a sonegação fiscal em 2022 ultrapassou os R$ 626,8 bilhões. Para o Sinprofaz, os estudos indicam que a arrecadação brasileira poderia se expandir em 23% se a evasão tributária fosse interrompida no país.

"A reforma não apresenta mecanismo para evitar a sonegação e nem tributar as grandes fortunas. Os deputados, quando não são os mais ricos, são representantes dos mais ricos, que não querem pagar mais impostos", denuncia Hélio Santos.

O pesquisador lembra que não havia nenhum brasileiro no grupo de 120 milionário e bilionários que, em 2022, entregaram uma Carta no Fórum Econômico de Davos (Suíça), defendendo maior tributação de grandes fortunas.

"Ninguém no Brasil quer pagar imposto. O maior herói brasileiro, Tiradentes, morreu por reclamar do pagamento de impostos, que considerava à época uma exploração, mesmo sendo de uma elite. Imagine o que recai sobre os mais pobres", compara Hélio Santos.

Próxima etapa da reforma poderá contemplar impostos diretos

A professora Eliane Barbosa Conceição explica que essa primeira etapa da Reforma Tributária contemplou apenas o processo de cobrança de impostos indiretos, ou seja, no consumo e na produção de bens e serviços. Espera-se que a segunda etapa avance para o imposto direto, que incide sobre o patrimônio e a renda, e envolve o Imposto de Renda e impostos sobre heranças e grandes fortunas.

"Aí, sim, vai mexer no bolso do setor econômico brasileiro, será uma verdadeira guerra", prevê a professora.

Enquanto não há mudanças significativas que reduzam o impacto dos tributos para os mais pobres, os especialistas cobram do governo mais políticas públicas.

"Já que o Estado onera os mais pobres é preciso que esse valor seja investido em políticas mais robustas que atinjam os mais pobres", defende Hélio Santos.

Eliane Barbosa reforça: "É fundamental que a arrecadação pública seja comprometida com gastos sociais, como Educação e Saúde, ou seja, na entrega que o Estado precisa oferecer a quem mais contribui".

Para aprofundar essas questões, o Ciclo de Debates "Tributação Justa, Reparação Histórica" será transmitido de forma online pela plataforma Justa, CEJEDR, REAFRO, PUC-SP, OXFAM Brasil, CONTAG e Projeto Lélia Gonzalez, Presente! (Unilab-CE). Para saber a programação, acesse aqui