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Maresias é a versão litorânea da "massa cheirosa" X "gente diferenciada"
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Em agosto de 2010, a elite do nobre bairro de Higienópolis, em São Paulo, se mobilizou para impedir a construção da estação Angélica do metrô, temendo a invasão de moradores da periferia chamados eufemisticamente de "gente diferenciada".
Adivinhem o que aconteceu? A Companhia do Metrô logo refez seus projetos e construiu a estação em outro lugar, longe dos olhos da "massa cheirosa", como foi apelidada nos jornais a parte vencedora.
São os dois Brasis em que o país foi dividido desde a colonização, quando os nativos foram expulsos de suas casas nas áreas centrais do Rio de Janeiro para dar lugar aos integrantes da nobre Corte portuguesa, a quem passaram a servir. E deram início à escalada de barracos erguidos nas encostas dos morros, que ganharam o nome de favelas.
A disputa por espaços urbanos e rurais, que acompanha a própria História do Brasil, chegou mais recentemente ao Litoral Norte de São Paulo, com a construção da Rio-Santos e de mansões nos luxuosos condomínios abertos em seguida em praias paradisíacas.
Nos anos 1970, quando as obras ficaram prontas, os migrantes nordestinos, atraídos pela oportunidade de trabalho, resolveram ficar por ali mesmo. Começaram a construir seus barracos nas encostas da Serra do Mar, do outro lado da Rio-Santos, que corta ao meio nossa secular mancha de desigualdade social.
De um lado, ficaram os mais ricos da "massa cheirosa", à beira-mar; do outro, a "gente diferenciada", que passou a trabalhar como empregados domésticos nos condomínios.
Não era para ser assim. Nesta quinta-feira, em entrevista ao UOL, o prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto (PSDB), falando sobre as consequências da tragédia vivida pela cidade, revelou que tinha um plano para construir uma vila de casas populares na praia de Maresias, a mais chique da região, para abrigar 300 famílias que moravam em áreas de risco na Serra do Mar.
Assim como aconteceu em Higienópolis, cerca de 500 proprietários de imóveis de veraneio de classe média e alta de São Sebastião pediram uma reunião com o prefeito, para barrar a construção destas habitações do programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal, em Maresias.
O motivo não era nada nobre: com a chegada dos novos moradores, poderia haver uma desvalorização imobiliária, além do convívio forçado com a "gente diferenciada", que não sai nas colunas sociais, disputando o mesmo espaço com os bacanas nas areias da praia e nas filas nas padarias e nos mercados que se formam na temporada de verão.
Nas palavras do prefeito:
"Há dois anos, elaborei um programa para a construção de 400 casas. Houve um absurdo: os moradores de média e alta renda, incluindo empresários e famosos, reuniram-se com a prefeitura simplesmente negando a construção de casas populares. Fui simplesmente bloqueado por pressão popular e cancelaram nossos programas na Caixa Econômica Federal".
Não foi bem uma "pressão popular". Alguém do governo Bolsonaro, muito influente na Caixa naquela época, resolveu o problema com uma "chave de galão", o popular "sabe com quem está falando?". E as casas nunca saíram do papel. Os moradores das áreas de risco continuaram vivendo e morrendo no mesmo lugar, como aconteceu esta semana.
Nestas disputas por espaço, historicamente, os vencedores continuam sendo sempre os mesmos. Ouvido por Mônica Bergamo, da Folha, Eliseu Arantes, que presidia a Sociedade de Moradores de Maresias, em 2020, quando foi apresentado o projeto, nega toda essa influência junto ao poder.
"Não é verdade o que o prefeito falou. Nunca fomos contra esse projeto". Segundo Arantes, "o prefeito queria construir as casas num charco" e não havia rede de saneamento suficiente para Maresias receber novas habitações. Só de casas populares, é claro, já que os condomínios de luxo nunca pararam de crescer.
Foi nesta mesma praia de Maresias que moradores de um desses condomínios, a Vila de Anoman, atacaram com xingamentos e empurrões os repórteres Tiago Queiroz e Renata Cafardo, do Estadão, que estavam fazendo a cobertura sobre os prejuízos causados pela tragédia.
Entre os palavrões usados para xingar os repórteres, estavam as palavras "comunista" e esquerdista", o que não é bem o caso do jornal onde eles trabalham.
"Por que eles se comportam desse modo? O que lhes terá passado pela cabeça para dizer o que disseram e agir como agiram? A pergunta não deveria interessar apenas aos que estudam os descaminhos do ódio em almas açoitadas por tempestades. Acima de tudo deveria merecer a atenção dos que se preocupam com a paz social no Brasil", escreveu no mesmo jornal o mestre Eugenio Bucci, um brilhante estudioso da comunicação e da alma brasileiras.
Vida que segue.
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