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Balaio do Kotscho

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Madame Lee era sempre essa festa ambulante; perto dela não havia tristeza

Rita Lee (em gravura de 1993): foram 60 anos de uma carreira feita de sucessos - Divulgação
Rita Lee (em gravura de 1993): foram 60 anos de uma carreira feita de sucessos Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

09/05/2023 15h49

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Rita Lee, falando em terceira pessoa, no texto de apresentação do seu novo livro, com lançamento marcado por ela mesma para o próximo dia 22:

"Rita Lee continua a contar sua história em "Outra Autobiografia"" (...) Quando decidi escrever Rita Lee: "Uma Autobiografia" (2016), o livro marcava, de certo modo, uma despedida da persona ritalee, aquela dos palcos, uma vez que tinha me aposentado dos shows. Achei que nada mais tão digno de nota pudesse acontecer em minha vidinha besta. Mas é aquela velha história: enquanto a gente faz planos e acha que sabe de alguma coisa, Deus dá uma risadinha sarcástica:"RitaLeeRita pode ter tido de tudo, menos uma "vidinha besta"".

Essa moça sabia rir dela mesma. Era uma festa ambulante, sem hora para acabar. Ontem, acabou. Chegou a vez dela de ir fazer festa no céu e continuar rindo de nós.

Tínhamos 16 anos, em 1964, quando nos conhecemos no curso médio do Liceu Pasteur, um colégio franco-brasileiro da Vila Mariana, onde ela nasceu e morava. Naquele ano, enquanto o Brasil entrava na mais longa ditadura da sua história, Rita já chamava a atenção de todos ali, tocando rock nas bandas da escola, e eu começava como repórter num jornal de bairro de Santo Amaro. Posso dizer que vi nascer essa grande estrela da música popular brasileira, diferente de tudo o que já se havia visto antes.

Rita não era a melhor aluna da classe, nem a mais bonita, nem a mais gostosa. O que fascinava nela era sua simples presença numa rodinha de alunos, sempre alegre, ousada, inventiva, colorida, musical, dona de si, cheia de planos. Perto dela, não havia tristeza. Era a mais desejada pelos rapazes e admirada pelas moças. Num tempo em que ainda não se falava em feminismo, empoderamento das mulheres, lugar de fala, e tal, e o rock era um reduto masculino como o futebol, Rita se destacava como a grande novidade no meio musical, impondo respeito, sem perder seu jeito leve e fagueiro de ser.

É o que me lembro dessa menina que se tornaria uma revolucionária da música popular brasileira, sem dar nenhum tiro, a quarta artista e primeira cantora que mais vendeu discos no Brasil: 55 milhões de cópias. Só perdia para a dupla sertaneja Tonico & Tinoco, o rei Roberto Carlos e Nelson Gonçalves. Mas quem a via desfilando alegre e fagueira não imaginava o quanto isso lhe custava em trabalho, viagens e sacrifícios pessoais para compor suas próprias canções com a guitarra elétrica em punho, uma extravagância. Rita era uma usina de fazer música, de todos os gêneros, do pop rock, ao tropicalismo, da new wave à MPB, da bossa nova à eletrônica, tudo junto e misturado.

Não sei por que, eu e outros meninos, de brincadeira, começamos a chamar Rita de "madame", talvez, exatamente por ela ser a antítese das senhoras da época, recatadas e do lar.

Cruzaria com ela em shows e nos festivais de música que marcaram época no final dos anos 1960, e nos reencontramos na Escola de Comunicação e Artes da USP, onde eu tinha entrado na primeira turma e ela veio um ano depois. Mas a gente não era muito de estudar. Faltávamos mujto às aulas porque preferíamos trabalhar, e acho que ela também nunca terminou a faculdade, assim como eu.

O que sempre achei mais incrível na trajetória dessa mega-artista é a quantidade de sucessos dela, de todas as épocas, que as pessoas continuam cantando até hoje. Se você perguntar a elas qual a que mais as marcou na vida, podem citar dezenas de canções diferentes, ao gosto de cada um. Impossível dizer qual foi a melhor, se "Mania de Você", "Lança Perfume", "Agora só falta Você", "Baila Comigo", "Amor e Sexo". Lembram-se?

A festa permanente que era a vida de Rita Lee teve que ser interrompida algumas vezes por episódios como a da separação tumultuada do seu parceiro de música e de vida Arnaldo Batista, no tempo de "Os Mutantes", as várias internações provocadas pelo consumo de álcool e drogas, a prisão armada na ditadura por terem encontrado restos de maconha na sua casa, e a provação maior, a descoberta do câncer no pulmão em 2021, um dos temas centrais da sua autobiografia pós-morten.

Rita Lee não combina com morte. Prefiro guardar as boas lembranças da sua vida.

Valeu, Madame Lee.

Para quem fica, vida que segue.