Topo

Camilo Vannuchi

A incrível história de Leonor Carrato, a desaparecida que reapareceu

Leonor Carrato, desaparecida em 1967, foi localizada em Colinas do Tocantins aos 99 anos com o nome de Maria Lídia Martino, adotado em 1971 - Aurelino Pires/divulgação
Leonor Carrato, desaparecida em 1967, foi localizada em Colinas do Tocantins aos 99 anos com o nome de Maria Lídia Martino, adotado em 1971 Imagem: Aurelino Pires/divulgação

Colunista do UOL

07/05/2020 16h10

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Foi o jornalista Lailton Costa quem publicou o relato mais surpreendente e alvissareiro do ano para quem se interessa em conhecer a história dos anos de chumbo e seus efeitos na democracia. E também para aqueles que estiverem dispostos a admitir que a Terra não é plana e que houve, sim, uma ditadura no Brasil.

Publicada no Jornal do Tocantins, a reportagem de Lailton conta em detalhes o resgate de uma senhora de 99 anos - ela completaria 100 anos em 16 de abril - que morava sozinha e em situação de abandono numa casa em Colinas do Tocantins. Segundo o relato de Lailton, Maria Lídia Martino, nome que consta em seus documentos, foi agredida e teve sua casa saqueada por usuários de drogas em março. Uma denúncia da ocorrência acabou motivando a ida de uma agente da delegacia de atendimento à mulher e vulneráveis ao local. Fotografias feitas pela policial civil Maria Bethânia Valadão nessa visita podem ser conferidas na reportagem. Muito magra, cabelos brancos e rosto vincado, aparentemente banguela, Maria Lídia dormia num colchão rodeada por sujeira. Sua casa parecia um cativeiro, com janelas e telhas estilhaçadas, sacos de lixo por todo lado, portas sem fechadura. Maria Bethânia teria de levar Maria Lídia para fazer um exame de corpo de delito.

Demorou três encontros e quase uma semana para a idosa, desconfiada, aceitar fazer o exame e, aos poucos, começar a revelar seu passado. Primeiro o passado recente: antes de morar sozinha, Maria Lídia dividia a casa com Marco Polo Cristino Silva, seu companheiro desde os anos 1980, com quem viveu em Anápolis antes de ambos se mudarem para Colinas, em 1986. Marco Polo morreu em janeiro do ano passado. Em seguida, começou a tecer o fio de sua longa jornada rumo ao isolamento. "Vou lhe contar uma coisa que nunca contei a ninguém", teria dito à agente. "Meu nome verdadeiro não é esse".

Lailton Costa é quem conta: "O cuidado redobrou quando Bethânia ouviu a narrativa de Maria Lídia, com detalhes de que enfrentara a ditadura militar e chegou a ser presa em 1967", conta o repórter no Jornal do Tocantins. "Também lhe contou que era uma das fundadoras do Partido Comunista do Brasil, o PCdoB (ela e o repórter se referem à "reorganização" do partido após o "racha" de 1962 que dividiu o antigo Partido Comunista em PCB e PCdoB), e fugiu para Goiás em grupo de lutas contra a repressão, após passar por treinamento fora do país". Principalmente, Maria Lídia não era Maria Lídia, mas Leonor Carrato. E vivia havia mais de 50 anos na clandestinidade.

O Departamento Estadual de Investigações Criminais assumiu o caso com a missão de desvendar o passado daquela senhora e localizar algum familiar. No início de abril, um agente do DEIC conseguiu fazer contato por telefone com Leila, 80 anos, sobrinha de Maria Lídia e residente em Andradas (MG). Leila contou para a irmã Luciene Anacleto, em São Paulo; Luciene contou para o primo Claudiney Ferreira. Será mesmo ela? Que loucura! O sumiço da tia era uma espécie de lenda na família. Leonor havia desaparecido em 1967. Em entrevista a Lucas Rocha, da revista Fórum, a sobrinha Luciene conta que a mãe e os irmãos de Leonor a buscaram de diversas maneiras entre 1967 e 1980, inclusive no Estado de Tocantins, então parte de Goiás. Chegaram a contratar um detetive. A adoção do nome falso, trocado de Leonor Carrato para Maria Lídia Martino em 1971, dificultou ainda mais a localização.

A imagem abaixo reproduz um excerto do Diário Oficial do Estado de São Paulo de 9 de julho de 1980 em que se faz menção a uma ação de declaração de ausência protocolada em junho de 1979 em Itaquera, distrito de São Paulo onde Leonor viveu a juventude. Nela, Maria Rodrigues Carrato, mãe de Leonor, relata o desaparecimento da filha. "Em meados de 1967, provavelmente em julho, sua filha veio a desaparecer do lar e, malgrado as constantes buscas de informações junto às autoridades policiais, jamais obteve qualquer notícia de seu paradeiro", diz a declaração. "Acredita a supracitada que sua filha esteja morta, pois costumava fazer viagens de carro em suas férias, até mesmo para outros Estados, e o carinho que essa lhe dedicava jamais autorizaria tão prolongada ausência". A "citação da mesma por edital", como consta no documento, indica que Leonor teria o prazo de doze meses para reaparecer a fim de tomar posse de seus bens. Infere-se, aqui, que provavelmente Leonor teria direito a parte de alguma herança, a partir do qual perderia sua participação no inventário e sua cota seria repartida pelos demais beneficiários.

O desaparecimento de Leonor Carrato em meados de 1967 foi registrado por sua mãe, Maria, em 1979  - Reprodução do Diário Oficial de São Paulo de 9/7/1980 - Reprodução do Diário Oficial de São Paulo de 9/7/1980
Imagem: Reprodução do Diário Oficial de São Paulo de 9/7/1980

Luciene viajou de São Paulo até Colinas do Tocantins a tempo de abraçar Leonor no seu aniversário de 100 anos, em 16 de abril. De lá, levou a tia para viver com com Leila, a sobrinha de 80 anos, em Andradas (MG), a duas horas e meia da cidade natal de Leonor, Itamogi (MG).

A história de Leonor foi recebida com surpresa e curiosidade por militantes políticos que participaram de movimentos guerrilheiros nos anos 1960 e 1970. Conversei com um deles, o ex-deputado José Genoino, que integrou a guerrilha do Araguaia nos anos 1970. Genoino falou por telefone com Luciene e espera passar o período de isolamento social para visitar Leonor. Ele não a conhece, mas Leonor garantiu à sobrinha que esteve com ele, por volta de 1968, em São Paulo. E ainda garantiu que o encontrou aconteceu na casa do advogado criminalista Raimundo Pascoal, que se somou a defesa de muitos jovens acusados de subversão ou terrorismo naquele período. O próprio Genoino, entusiasmado com a descoberta, entrou em contato com dois companheiros que atuaram na região de Colinas do Tocantins no período das guerrilhas, Wladimir Pomar e Zezinho, e lamenta que nenhum deles tenha outras informações ou pistas sobre a atuação política de Leonor.

Em seu relato, a "reaparecida política" afirma que foi presa em 1967 e se aproximou da Ação Libertadora Nacional nos primeiros anos da organização liderada por Carlos Marighella, entre 1967 e 1969. Na virada dos anos 1970, teria se mudado para Goiás, onde sua atividade de fachada foi vender roupas, como mascate, em cidades e vilarejos à margem do Rio Araguaia, enquanto atuava como base de apoio (ela usa a expressão "inteligência", o que parece pouco provável) dos movimentos guerrilheiros. Ela garante que nunca pegou em armas.

Embora ainda não tenha sido possível comprovar com documentos ou com testemunhos a participação de Leonor na guerrilha, as datas, os anos e as cidades citadas por Leonor colocam a história de pé. A própria cidade de Colinas do Tocantins, em que se fixou na redemocratização, fica numa extensa planície entre os rios Tocantins e Araguaia, no meio do caminho entre Palmas e Xambioá, um dos epicentros da guerrilha, a caminho do Bico do Papagaio.

Segundo Genoino, é pouco provável que ela tenha participado da mesma guerrilha que ele, mas que é muito possível que tenha participado de outras experiências e pesquisas que aconteceram na região um pouco antes, organizadas por diferentes grupos interessados em instalar núcleos guerrilheiros, não somente do PCdoB, mas também do Molipo e outros. "Os grupos palmilharam aquela região toda e Leonor pode ter participado de alguma dessas pesquisas", diz. "Teve inclusive uma experiência do Flávio Tavares com o Brizola, sobreviventes do Grupo dos Onze, já depois de Trombas e Formoso (revolta em Goiás conduzida pelo PCB nos anos 1950), e acho que foi por aí que Leonor pode ter se vinculado". Na mesma época de Caparaó (guerrilha na divisa de Minas Gerais com o Espírito Santo em meados dos anos 1960), Genoino afirma que essa turma tentou fazer alguma coisa no norte de Goiás. "De qualquer maneira, a história dela bate, não se trata de invencionice", garante o ex-deputado. "É um enorme fato político resgatar uma pessoa depois de 50 anos na clandestinidade!".

Leonor está lúcida e vive agora em Andradas (MG). Uma transformação brutal e que se pretende libertadora para uma mulher centenária que, até dois meses atrás, mantinha a identidade falsa assumida há meio século. Uma transformação igualmente brutal para a família que a dava por desaparecida por todo esse tempo. Este colunista pretende acompanhar os próximos acontecimentos e retomar este assunto.