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Camilo Vannuchi

A extrema-direita vai gostar do novo filme sobre Caetano

Caetano Veloso em cena de "Narciso em Férias", selecionado para o Festival de Veneza - Divulgação
Caetano Veloso em cena de 'Narciso em Férias', selecionado para o Festival de Veneza Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

31/07/2020 15h08

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A extrema-direita hidrofóbica vai gostar do documentário Narciso em Férias. Com estreia prevista para este ano, em plataforma de streaming (vídeo sob demanda), o filme é dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, os mesmos de Uma Noite em 67. Produzido por Paula Lavigne, narra o conturbado momento da ditadura em que Caetano Veloso - o genial narciso do título - foi sequestrado pela repressão em São Paulo, encarcerado no Rio de Janeiro e exilado em Londres de 1969 a 1971.

— Eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui, eu não tenho nada...

A despeito da estética pouco ufanista e desprovida de tons auriverdes do longa, as pessoas de bem e os reacionários do Brasil, principalmente os fascistas e aqueles que passeiam sem máscara (nem arrependimento) pelos quatro cantos da Terra Plana, encontrarão ao menos um motivo para gostar do filme: ver Caetano preso e exilado, já pensou que delícia?

— Vocês não estão entendendo nada, nada, absolutamente nada!

Caetano tem sido alvo contumaz do bolsonarismo - de acusações de pedofilia disparadas por Olavo de Carvalho a ataques de haters a cada tuíte em que se manifesta contra o governo ou preocupado com o cenário distópico em que se encontra o país. Só neste ano, assinou um artigo contra Bolsonaro no jornal inglês The Guardian junto com outros 2.700 artistas e intelectuais, nem todos brasileiros, e, meses depois, foi um dos signatários de carta de repúdio à então secretária nacional de Cultura Regina Duarte. "O fascismo está mostrando suas garras", afirmou em inglês num vídeo postado em sua conta no Twitter em janeiro.

— Enquanto os homens exercem seus podres poderes, morrer e matar de fome, de raiva e de sede, são tantas vezes gestos naturais.

Após um período de baixo engajamento que se estendeu até meados da década, o envolvimento de Caetano com a pauta política tem crescido substancialmente a partir de 2016 e parece ter se avolumado com a ascensão do bolsonarismo. Desde que estacionou seu carro no Leblon, há pouco mais de 9 anos, fazia tempo que o nome de Caetano não aparecia com tanta frequência nas redes, envolvido em notícias e episódios sem relação direta com a música.

— I'm alive and vivo, muito vivo, in the electric cinema or on the telly, telly, telly…

Nesta semana, em entrevista publicada pelo Guardian, Caetano chamou o governo Bolsonaro de "pesadelo" e de "loucura". E anunciou que fará, enfim, uma live. No dia de seu aniversário de 78 anos, exatamente no dia 7 do mês 8. Tudo isso na mesma semana em que o Festival de Veneza anunciou a seleção do filme Narciso em Férias para a próxima edição. Mais do que isso, o documentário é a única produção brasileira selecionada pelo festival, embora não concorra ao Leão de Ouro. A programação foi reduzida, em número de filmes e em número de críticos credenciados, mas ocorrerá presencialmente entre 2 e 12 de setembro - o primeiro festival internacional de cinema presencial desde o início da pandemia.

— Rosa do crepúsculo de Veneza, mesmo aqui no samba-canção do meu rock'n'roll.

Caetano e o Festival de Veneza, aliás, têm quase a mesma idade. Um dos mais importantes e tradicionais festivais de cinema do mundo fará em setembro sua edição número 77, menos de um mês após o compositor completar 78.

— Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais...

Narciso em Férias foi inspirado no capítulo homônimo de Verdade Tropical, livro de memórias publicado por Caetano em 1997 para contar a história da Tropicália. Pelo menos a sua versão da história, a versão do narciso genial. Delimitado no tempo, o documentário se atém ao período de perseguição, prisão e banimento do artista, juntamente com o parceiro Gilberto Gil.

— É preciso estar atento e forte; não temos tempo de temer a morte.

Gil e Caetano foram tirados de suas casas na noite de 26 de dezembro de 1968, na esteira do AI-5, jogados numa viatura sem identificação e levados de São Paulo para o Rio de Janeiro durante a madrugada. Os caracóis de seus cabelos foram podados e Caetano foi deixado por um período numa solitária. Somente no ano seguinte as tratativas com as autoridades resultaram na decisão pelo exílio forçado, bem como na autorização para que fizessem um último show em Salvador a fim de levantar recursos para os primeiros meses de permanência em terra estrangeira.

— Eu não sou daqui, marinheiro só, eu não tenho amor, eu sou da Bahia de São Salvador...

É no mínimo alvissareiro e auspicioso que este filme seja lançado agora, em meio à pandemia de revisionismos e negacionismos que atravessamos. Porque a ditadura e seus efeitos são reais e tangíveis. Embora haja quem afirme que nada disso existe ou existiu. Que não houve ditadura no Brasil, que a Covid 19 é uma gripezinha e que cloroquina faz milagre. O jovem narciso dos anos 1970 teria uma resposta na ponta da língua: "Você é burro, cara? Que loucura! Que coisa absurda. Isso aí que você disse é tudo burrice."

— Me larga, não enche, você não entende nada, eu não vou te fazer entender...

Confira o trailer aqui.