Muita calma no fim do confinamento
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"A noite é sempre mais escura antes do amanhecer", disse Batman certa vez.
A semana começou com a notícia alvissareira de que a primeira vacina contra Covid-19 fora registrada para uso na Rússia. Não demorou dez minutos para que portais de diversos países destacassem o óbvio: sem concluir os testes, não há como garantir a eficácia da vacina. E, neste quesito, o laboratório russo estava apenas engatinhando, tendo concluído apenas uma das três etapas necessárias.
Segundo a OMS, há mais de 150 vacinas sendo desenvolvidas no momento, em 29 laboratórios diferentes, das quais apenas sete estão na terceira fase. Um boletim atualizado da corrida pela vacina pode ser baixado aqui. Entre as mais adiantadas estão a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford com a AstraZeneca, a ser produzida pela FioCruz no Brasil, e a vacina desenvolvida pela Sinovac, em convênio no Brasil com o Instituto Butantan. Na melhor das hipóteses, alguma delas estará disponível em janeiro.
Ainda assim, o clima é de otimismo - ou o mais parecido com otimismo que pudemos sentir desde março. O presidente da República e 12 governadores de Estado pegaram Covid, mas o clima é de otimismo. São 1.300 mortes nas últimas 24 horas, mas o clima é de otimismo. Mais de 400 mortes por dia no Estado de São Paulo, e ainda assim as autoridades estão satisfeitas, porque 80% do Estado está na fase amarela, incluindo a capital, onde restaurantes reabriram e as escolas se preparam para retomar as aulas presenciais.
Tenho sido mais cauteloso. Faço parte daquele grupo de pais que se sentem mais seguros com mais um ou dois meses de aulas remotas. Espero o elevador chegar vazio para entrar. E sinto calafrio ao ver grupos de amigos almoçando juntos no restaurante, gargalhando e lançando perdigotos uns nos outros. Jogo de futebol no estádio? Nem morto. Enquanto isso, revolto-me com ordens de despejo, com declarações irresponsáveis (até quando?) e com ônibus lotados.
Após 140 dias de isolamento, voltei a encontrar pessoas que não moram comigo nesta semana. Com duas condições: usar máscaras e manter distância segura. Sobretudo, muita atenção e cuidado.
Volta e meia, dou replay num vídeo que viralizou nos grupos de WhatsApp dois meses atrás. Nele, o montanhista equatoriano Ivan Vallejo compara a fase que sucede ao topo da curva pandêmica à descida de uma montanha após sua conquista. "Tão exigente como a subida, ou talvez mais, é a descida", diz ele, o único montanhista do hemisfério Sul a escalar sem oxigênio suplementar todos os 14 picos com mais de 8 mil metros de altitude que existem no mundo. "Por quê? Porque estamos cansados, estamos esgotados. As pessoas que estão na linha de frente, os profissionais de saúde, estão exaustos, com justa razão. E nós, cidadãos comuns, também estamos esgotados e, possivelmente, fartos de confinamento. E com medo, porque a economia está quase destroçada. Então, urgentemente, queremos escapar e sair da nossa própria zona da morte".
Ivan Vallejo faz um apelo. "Queridos amigos, não percamos a concentração e o cuidado na descida. Que a pressa e o cansaço não nos vençam de modo que, em um segundo, ponhamos a perder o que ganhamos com tanto esforço. Que possamos chegar ao acampamento-base sem perder nem mais um membro da cordada", conclui, referindo-se ao grupo de montanhistas que fazem um percurso amarrados entre si com uma corda.
Ao ouvir o depoimento de Vallejo, impossível não me lembrar de Vítor Negrete, montanhista de Campinas (SP) morto em 2006, aos 38 anos, horas depois de se tornar o primeiro brasileiro a chegar ao topo do Everest sem o uso de oxigênio suplementar. Naquele ano, Negrete foi uma das 12 vítimas fatais da montanha mais alta do mundo.
Eu entrevistara Negrete um ano antes, quando ele chegou pela primeira vez ao topo do mundo, na ocasião com o uso de oxigênio. Jovem repórter, havia acompanhado o passo a passo daquela expedição, comunicando-me diariamente com integrantes da sua equipe por meio de um telefone via satélite. Houve festa no dia da vitória, embora seu parceiro de escalada, Rodrigo Raineri, tivesse sido obrigado a abortar o ataque final faltando apenas 50 metros para o cume. A curta distância de meio quarteirão pode levar mais de uma hora para ser transposta quando se está a mais de 8 mil metros de altitude, o vento ultrapassa 70 quilômetros por hora, a sensação térmica é de 42 graus negativos e a dificuldade de respirar é enorme.
Após o retorno da dupla ao Brasil, pude ouvir o aflitivo relato de Negrete sobre sua descida: uma longa e exaustiva jornada que se estendeu até 1 hora da madrugada porque sua barraca não estava mais onde eles haviam deixado, o que o obrigou a descer por mais sete horas até o acampamento seguinte.
Se aquela descida tinha sido agressiva, violenta, exaustiva, lancinante, quase insuportável, a descida no ano seguinte se revelaria fatal. Ao apelo de Vallejo para que saibamos fazer do relaxamento pós-pandemia uma distensão lenta, gradual e segura, vale acrescentar o testemunho de vida e morte de Vítor Negrete. A descida pode demorar muito mais tempo do que o previsto. E inspirar todos os cuidados imagináveis. Para que possamos estar aqui no futuro e poder dizer não apenas que chegamos lá em cima, mas também que nos foi permitido voltar.
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