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Camilo Vannuchi

O discreto charme de Luiza Erundina

Luiza Erundina, candidata a vice-prefeita de São Paulo pelo PSOL, aguarda na fila para votar no bairro de Mirandópolis, na Zona Sul da capital - Annelize Tozetto
Luiza Erundina, candidata a vice-prefeita de São Paulo pelo PSOL, aguarda na fila para votar no bairro de Mirandópolis, na Zona Sul da capital Imagem: Annelize Tozetto

Colunista do UOL

20/11/2020 01h00

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Uma das fotos mais compartilhadas nos últimos dias foi feita por Annelize Tozetto num colégio eleitoral em Mirandópolis, na Zona Sul de São Paulo, na manhã de 15 de novembro. A repercussão surpreendeu a fotógrafa. De repente, a foto estava por todo lado, quase sempre sem os créditos. Sites e blogs de amplo alcance reproduziram a foto, inclusive redes sociais de candidatos e parlamentares, sem mencionar a autoria. Quando muito, a imagem vinha com um lacônico "reprodução/Twitter", entre parêntesis. Fotografia é pro mundo, dizem os pós-modernos. Ou, conforme a feliz analogia perpetrada com ironia pelo violeiro Paulo Freire, homônimo do patrono da Educação brasileira, "caminhamos inexoravelmente para o comunismo" - e os sintomas começaram na cultura, com a extinção da propriedade privada para que tudo possa ser distribuído gratuitamente. E ai do músico, do cineasta, do fotógrafo ou do escritor que ouse reclamar do tráfico de MP3, PDFs, AVIs e JPGs.

Annelize, aparentemente, levou na esportiva. "Alô, Revista Fórum: a foto é minha", alfinetou ao compartilhar nas redes um post daquele portal. "Com crédito é sempre muito melhor, né?", comentou, retoricamente, ao divulgar um post do Brasil de Fato logo depois. Pouco a pouco, amigos e amigas foram descobrindo que a foto era dela. "Tuas fotos salvaram nosso domingo. Obrigada", escreveu a internauta Larissa Ribeiro no Twitter. "Nossa, não sabia que essa foto era sua e de fato ela me atingiu de uma forma muito expressiva", elogiou Lolô Dantas, no Facebook. Na noite de quarta-feira, 18, um rápido desabafo: "Fico num mix de achar engraçado e triste as pessoas vindo me dizer que viram a foto e que não sabiam que era minha", Annelize tuitou. "Óbvio que quero que a imagem chegue ao maior número de pessoas, mas é preocupante não se importarem com créditos".

No clique feito por Annelize, uma senhora de 85 anos e 1,50 metro de altura aguardava na fila para votar. Usando máscara anti-Covid e segurando nas mãos título de eleitor, RG e caneta, Luiza Erundina de Sousa aguardava sua vez para digitar 50 na urna eletrônica.

A foto desencadeou uma reconfortante sensação de empatia que, em tempos pandêmicos e autoritários, torna-se motivo de inspiração para muitos. Candidata a vice-prefeita de São Paulo na chapa de Guilherme Boulos, a deputada federal do PSOL poderia ter dado uma carteirada e passado na frente dos demais, mas não deu. Poderia estar cercada por um séquito de assessores, mas não estava. Poderia ter ficado em casa, protegida do vírus e do assédio, beneficiada pelo voto facultativo para quem tem mais de 70, mas não ficou. Discretamente, esperou na fila. Mais do que participar da festa da democracia, votar é envidar esforços para que a democracia seja restaurada, revitalizada, potencializada em tempos obtusos de terraplanismo e obscurantismo.

Luiza Erundina exerce importante protagonismo na disputa eleitoral em São Paulo. E pode ser o fiel da balança, a manilha providencial na mão de onze. Por diversos fatores. Um deles é a comparação entre os dois vices. Eleitores têm pedido a realização de debates entre os vices no segundo turno, tamanho o trauma causado pelo impeachment de Dilma, o segundo caso de presidente afastado em um intervalo de vinte e um anos. Contribuem para isso não somente a experiência e o carisma da candidata, mas também a simbologia da composição geracional e de gênero com um cabeça de chapa que ainda não completou 40 anos. E o recall da ex-prefeita que, para muitos, deixou saudade.

Erundina foi vereadora e deputada estadual pelo PT nos anos 1980 e prefeita de São Paulo de 1989 a 1993, pelo mesmo partido. Migrou para o PSB em 1998 e para o PSOL em 2015, elegendo-se deputada federal sucessivamente há 22 anos. É, hoje, decana do Congresso Nacional, no sexto mandato na Câmara dos Deputados. É verdade que Erundina foi ministra de Itamar Franco, presidente que sucedeu a Fernando Collor e que fora eleito graças às mesmas fraudes, aos mesmos golpes baixos e com a ajuda do mesmo testa de ferro que justificaram o impeachment em 1992. Anos depois, Erundina puxou votos para o PSB na campanha de 2014, quando o partido esteve coligado com o PSDB de Geraldo Alckmin, reeleito, ao mesmo tempo em que articulava a eleição da chapa Eduardo Campos-Marina Silva no âmbito federal. Hoje, Erundina é a decana no Congresso Nacional. Está no sexto mandato na Câmara dos Deputados.

Hoje, Erundina é referência de boa política e reserva moral no Estado. Não apenas para a esquerda, mas também para setores cada vez mais diversos do centro político, reconhecida pela honestidade, pela garra e pelo compromisso com a justiça social. Uma espécie de Eduardo Suplicy, uns dez anos mais velha.

Aos 85 anos, Luiza Erundina não somente fez questão de ir votar no primeiro turno, momento consagrado pelo instantâneo de Annelize, como não hesitou em fazer campanha de rua. O jeito foi improvisar um papa-móvel, um veículo individual com paredes de acrílico e equipamento de som para que Erundina, quase como uma fera de circo a desfilar pelas ruas sem sair de dentro da jaula, pudesse estar no meio do povo e dialogar com seus interlocutores.

Erundina pode ter sido também grande responsável por levar Boulos para o segundo turno: ela contribuiu para atrair votos de diversos eleitores que tradicionalmente votariam no PT, e também os votos feministas e de defensores de igualdade de gênero. Se Boulos é considerado um "irmão mais novo" por parte do eleitorado, Erundina é aquela que comparece como a dona da história, a voz da razão. Ali, um só tem a ganhar do outro.