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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Vacinei, e agora?

Colunista do UOL, Camilo Vannuchi toma a primeira dose da vacina contra a Covid-19 - Camilo Vannuchi
Colunista do UOL, Camilo Vannuchi toma a primeira dose da vacina contra a Covid-19 Imagem: Camilo Vannuchi

Colunista do UOL

29/05/2021 18h11

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Agoniza, mas não morre
Alguém sempre te socorre
Antes do suspiro derradeiro"
(Nelson Sargento, 1924-2021)

Atrasei dois dias a publicação desta coluna para que ela fosse meu primeiro texto depois da vacina. Encontrei a UBS vazia, pouco depois das 14h deste sábado. Valmir, o enfermeiro, foi logo mostrando, na ampola, a data de validade e o selo da Fiocruz.

Achei gozado. Na mesma semana em que a CPI da Covid sabatinou uma autoridade do Ministério da Saúde que, no ano passado, acusou a Fundação Oswaldo Cruz de ter um "pênis" na porta, referindo-se à arquitetura mourisca do pavilhão de Manguinhos, ganhei no braço esquerdo uma picada da Fiocruz. Não é pênis, mas pica. E foi bom pra mim. Que tempos, Jesus, que tempos...

Sobreveio um sentimento paradoxal de indignação e alívio. Caramba, essas vacinas poderiam ter começado a chegar ao Brasil em dezembro do ano passado. E tanta gente deveria tomar. Todos nós, para ser exato. Todos e todas. Pensei sobretudo nas escolas. Trocaria meu lugar na fila, se pudesse, para que todos os trabalhadores do Ensino recebessem sua primeira dose ainda neste semestre. E não apenas as professoras e os professores - inclusive aqueles com vinte e poucos anos de idade -, mas também os porteiros, as merendeiras, os profissionais da limpeza e do transporte escolar. Pensei também nos profissionais que trabalham em residências alheias. Quantos estão na lida, correndo riscos diariamente nos ônibus e trens lotados, para servir senhoras e senhores já vacinados, que nem por um segundo cogitam usar máscara em suas próprias casas em respeito às pessoas que os servem. A desigualdade social tem muitas faces. Todas elas nojentas.

Em dois minutos, deixei o posto de saúde com o comprovante de vacinação em mãos e a data da segunda dose - se houver doses no Brasil até agosto - devidamente agendada. A sala voltou a ficar vazia e silenciosa. Ninguém na fila. Olhei mais uma vez para os frascos guardados na geladeira e na caixinha de isopor. Será que vai sobrar vacina no fim do expediente? Haverá descarte? Não era para essa UBS estar lotada? A categoria à qual pertenço começou a ser vacinada ontem e os locais de vacinação ficam vazios antes da hora do almoço em pleno sábado? Temi a abstenção. Muita abstenção nas eleições e muita abstenção nas campanhas de imunização, os males do Brasil são.

Voltei para casa com uma sensação de imensa gratidão ao SUS e à Fiocruz. Sob bombardeio, com recursos em declínio, alvo do desprezo e de uma anacrônica perseguição por parte daqueles que nos governam - uma perseguição essencialmente política -, essas instituições se agarram à ciência como boias e fazem do serviço público uma trincheira de resistência. Ainda bem. Agradeço a cada servidor e a cada servidora. Voltei para casa, também, sentindo uma tristeza infinita pelos amigos, conhecidos e referências que se foram em razão de uma doença para a qual já podíamos ter sido vacinados no ano passado. O Tadeu, o Lilo, o Alípio, o Aldir, o Nelson Sargento, o Paulo Gustavo, a Nicette Bruno, o Alfredo Bosi, o Ismael Ivo, o Aguinaldo Timóteo. O Tio Barnabé!

Imunizar-se é uma forma de salvar vidas. De todos, não apenas de quem toma a vacina. Se a vacina reduz em mais de 90% a chance de desenvolver formas graves da doença e requerer internação em UTI, quem se vacina contribui para aliviar a sobrecarga nos hospitais. Se a vacina reduz em quase 100% a chance de morte, é também uma forma de reduzir o número de órfãs e órfãos, de viúvas e viúvos, que, em muitos casos, pressionariam a seguridade e os instrumentos de proteção social, promovendo uma bola de neve perversa com efeitos muito ruins no próprio sistema de saúde. Quantos arrimos de família doentes, internados, incapacitados ou mortos? É esta percepção que me leva a recomendar a todas e todos que tomem a vacina assim que ela for oferecida para sua faixa etária, para sua ocupação ou sua condição de saúde. Sem hesitar. Só não vale pedir atestado falso, talquei?

Vacinei, e agora? Não muda nada, mas muda tudo. É preciso continuar se cuidando e evitar o contato com as pessoas que não moram com você. Quem se vacina também pode transmitir. E a doença está fora de controle. Reitero: ela está fora de controle e nem sabemos com qual intensidade virá a anunciada terceira onda. Hoje, ainda são mais de 2 mil mortes diárias, não há leitos disponíveis nas unidades de tratamento intensivo dos hospitais, a vacina produzida no Butantan acabou, a atual política de relações internacionais é uma piada e o capitão aquartelado no Governo Federal continua cagando (uma vez a cada dois dias, talvez) e andando: aglomerando-se sem máscara, defendendo o remédio ineficaz que mostrou à ema.

Não, esse país não é uma piada. Esse país é um filme de terror. Um filme B de terror. Com um péssimo roteirista e um diretor ainda pior. E quem mais deveria protegê-lo, esse não poupa esforços para tornar o desfecho ainda mais sombrio.

O que muda, então? O ânimo. Para seguir cobrando, denunciando, reivindicando. E a convicção de que este colunista hipertenso aqui, agora vacinado, em breve estará de volta às ruas. Com máscara, sangue nos olhos e losartana. Para que a defesa da vida vença o genocídio, a esperança supere a angústia, a alegria suceda o luto e a liberdade se espalhe por campos e cidades.