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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mirem-se no exemplo de Margarida Genevois, 98 anos

Margarida Genevois, ativista dos Direitos Humanos, retratada por Bob Wolfenson. Foto de capa do livro "Margarida, Coragem e Esperança", de Camilo Vannuchi - Bob Wolfenson/divulgação
Margarida Genevois, ativista dos Direitos Humanos, retratada por Bob Wolfenson. Foto de capa do livro "Margarida, Coragem e Esperança", de Camilo Vannuchi Imagem: Bob Wolfenson/divulgação

Colunista do UOL

15/07/2021 00h30

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Margarida Genevois está inquieta. Mais de um ano praticamente sem sair de casa, em razão da pandemia. Um ano sem poder promover encontros e reuniões, proibida de recepcionar colegas de trabalho, intelectuais e amigos. Logo ela, que sempre cultivou as melhores amizades ao redor da mesa, em almoços e jantares tão saborosos quanto as conversas alinhavadas nessas ocasiões. Nos últimos cinquenta anos, muito do que se fez no Brasil em defesa dos Direitos Humanos, das liberdades individuais e coletivas, do enfrentamento do arbítrio e das desigualdades, da promoção da cidadania e da dignidade humana, surgiu ali, naquela sala, nos encontros organizados por Margarida.

A atividade remota, as distâncias, o isolamento, tudo isso tem deixado Margarida um pouco abatida. Por vezes, a respiração parece acelerada e ruidosa, como se fosse preciso abocanhar o ar em pequenas porções. Os exames confirmam que ela não tem nada: os pulmões estão intactos, escandalosamente preservados, a ponto de Margarida sair da consulta sem uma receita médica sequer. Onde já se viu alguém com a sua idade voltar para casa sem nenhuma prescrição, nem mesmo um comprimidinho para facilitar as coisas?

Aos 98 anos, Margarida se esforça para seguir em frente e tirar de letra mais essa batalha. A máscara abafa, esquenta, exige que ela fale mais alto do que gostaria. Tenta usar um protetor facial, que mais parece um escudo transparente a lhe cobrir as narinas e a boca. Insiste por quinze minutos, às vezes vinte, depois arranca a armadura. Pede desculpas e continua o depoimento, com ânimo renovado e um olhar de alívio.

Margarida está impaciente com as lives, irritada com os números, angustiada com as notícias. Os jornais a entristecem. Mais de um ano nessa toada. Um policial derruba uma mulher negra no chão e pisa em seu pescoço numa rua de São Paulo, asfixiando-a como fizeram com George Floyd nos Estados Unidos. Mais uma criança assassinada numa operação policial na Baixada Fluminense. Duas, três, uma dezena delas. Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, recebe ameaças de morte e é ofendido por um candidato a prefeito. Jair Bolsonaro, o presidente da República, chama a Covid-19 de "gripezinha", diz que ficar em casa é "conversinha mole" e que se preocupar demais com o contágio faz do Brasil "um país de maricas". Ridiculariza a consternação, chama de "mimimi". O número de mortos passa de 100 mil, supera 200 mil e chega a 300 mil, mais que o total de vítimas dos ataques atômicos a Hiroshima e Nagasaki, em 1945, ou cem vezes o número de vidas ceifadas no atentado às Torres Gêmeas, em 2001. As estatísticas não cedem. Elas avançam. Onde isso vai parar?

No comecinho de 2021, Margarida soube que uma vizinha faleceu após contrair o coronavírus e, por precaução, prefere não sair de casa para mais nada. Desde março do ano anterior, ela só? saía para ir ao médico e para fazer exames de rotina. Foram duas as exceções: em novembro, vestiu uma blusa verde, pegou a máscara e a armadura e agarrou-se à bengala para votar na Universidade Presbiteriana Mackenzie, pertinho de casa. Repetiu o gesto no segundo turno. Margarida fez questão. Ela diz que não perde uma eleição desde que o voto direto foi restaurado, encerrando o ciclo autoritário inaugurado com o golpe de 1964. Em 1982, votou para governador. Em 1985, votou para prefeito. E em 1989, votou para presidente pela primeira vez desde 1960, quando o voto feminino ainda era facultativo. A reabilitação do voto direto foi uma das bandeiras que Margarida empunhou na Comissão Justiça e Paz.

No dia 8 de março de 2021, dois dias antes de completar 98 anos, vestiu a máscara e a viseira e colocou mais uma vez os pés nas ruas para tomar a segunda dose da Coronavac, a vacina desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac e fabricada no Brasil pelo Instituto Butantan de São Paulo. Foi como um presente de aniversário, entregue a ela numa Unidade Básica de Saúde da Barra Funda. Mesmo sabendo que não se pode vacilar com essa doença, Margarida sentiu na pele uma lufada de esperança. Mas e o resto da população? E os professores? E os motoristas e cobradores, carteiros e balconistas, caixas de supermercado, pedreiros e domésticas? Margarida sente-se privilegiada. "Vacinar-se é tão importante, e tanta gente ainda não tem acesso à vacina", protestou.

Margarida sente-se cansada e diz que é "fadiga do material". "O que Deus ainda quer de mim?", pergunta para si mesma. Minutos depois, restabelecida, diz desconfiar que Ele se esqueceu dela. Isso é hora para se esquecer de alguém? O Brasil de volta ao mapa da fome, a desigualdade cada vez mais abissal, a população em situação de rua crescendo em proporções alarmantes, o desemprego altíssimo, um Governo Federal tomado por negacionistas, uma pandemia mundial dessa gravidade... Deus só pode ter alguma missão para ela, mais uma entre as tantas já? atribuídas ao longo de toda uma vida dedicada à solidariedade, à justiça social, à cidadania e aos Direitos Humanos.

Apesar de tudo, não há cansaço capaz de conter a marcha de Margarida. Assim como a Marcha das Margaridas, vigorosa caminhada organizada por mulheres sem terra, lavradoras e organizações feministas em homenagem à paraibana Margarida Alves, presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Alagoa Grande (PB) morta por um jagunço em 1983, a jornada de Margarida Genevois parece se agigantar e ficar mais potente a cada edição. Apesar da escalada de violência. Apesar dos direitos suprimidos. Apesar da profusão de ataques e retrocessos que atingem as mulheres e a classe trabalhadora no Brasil. Apesar do isolamento e da fadiga do material.

De certas coisas, Margarida nunca se cansa. Ela não se cansa de ler, por exemplo. Devora livros, um atrás do outro. Agarra-se a uma obra de trezentas páginas hoje e encerra o último capítulo amanhã. Tem profunda admiração por tudo que Eliane Brum escreve. Não perde um livro dela. Recentemente, descobriu o historiador israelense Yuval Noah Harari e leu os três livros que encontrou: Sapiens, Homo Deus e 21 lições para o século 21. Quando muito, reduz um pouco o ritmo para acelerar logo adiante. Um passo atrás, dois à frente. "Eu vinha lendo dois livros por semana, em média, e agora só estou conseguindo ler um", admite, um pouco envergonhada.

Margarida também não se cansa de trabalhar. Quer morrer trabalhando, ela diz. Morrer de pé. Como presidente de honra da Comissão Arns, faz questão de participar das reuniões, mesmo que seja por videoconferência e apenas para ouvir. Em dezembro de 2020, acompanhou ao longo de dois dias inteiros um seminário promovido em ambiente virtual para marcar a retomada da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos, um grupo que surgiu por iniciativa dela nos anos 1990.

Em janeiro de 2021, assinou com os ex-ministros José Carlos Dias e Paulo Sérgio Pinheiro um artigo para o jornal O Globo pedindo a saída do presidente. "Jair Bolsonaro perdeu as condições mínimas para exercer legitimamente o mandato presidencial que lhe foi atribuído, por absoluta incapacidade, vocação autoritária, insubordinação constitucional e constante ameaça à democracia e à vida das pessoas", diz o texto. Entre um artigo, um livro e uma live, Margarida quer saber das petições, dos abaixo-assinados. "Como a gente pode ajudar?"

Margarida quer que eu ande depressa. O livro, ela diz, precisa ficar pronto logo. Ela acredita que não terá muito tempo. E, se a ideia é escrever um livro de memórias, meio perfil, meio biografia, é bom não demorar. "Até porque a memória, você sabe como é...", comenta. Margarida fica apreensiva com o relógio biológico. Coisa triste ver tantas amigas e tantos amigos partindo. "Da minha turma, não sobrou praticamente ninguém", afirma, embora faça questão de se corrigir em seguida, para fazer constar que são muitas as suas turmas, diversas as amigas e os amigos vinte ou trinta anos mais novos. "A maioria tem a idade das minhas filhas".

Em 2020, no início da pandemia, as duas filhas mais velhas se mudaram para seu apartamento. Annie, a mais jovem, faleceu em 2018, aos 70 anos. O maior baque de toda a vida de Margarida. Deveria haver alguma lei proibindo filhos e filhas de partir antes de seus pais e de suas mães. Margarida ficou sem chão. Faz uma pausa, os olhos perdidos no horizonte. Em seguida, escolhe mudar de assunto e volta a contar episódios de sua trajetória. Ela quer que eu ande depressa.

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Este texto está no livro Margarida, coragem e esperança: os Direitos Humanos na trajetória de Margarida Genevois (Alameda Casa Editorial, 2021, R$ 60), com lançamento marcado para a próxima segunda-feira, 19 de julho, às 17h, pelo Facebook e pelo YouTube da editora (www.youtube.com/AlamedaCasaEditorial). Uma honra e uma alegria ter tido a oportunidade de contar a história de uma personagem tão singular, imprescindível e inspiradora aos 98 anos.