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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Dez anos atrás, Dilma Rousseff criava a Comissão da Verdade

Dilma Rousseff, presa política, durante interrogatório na Auditoria Militar do Rio de Janeiro (RJ), aos 22 anos, em 17 de novembro de 1970 - Reprodução
Dilma Rousseff, presa política, durante interrogatório na Auditoria Militar do Rio de Janeiro (RJ), aos 22 anos, em 17 de novembro de 1970 Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

18/11/2021 07h10

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Para alguns analistas, o subtítulo desta coluna poderia ser "Deu no que deu". Para outros, uma opção melhor e mais justa seria "E agora, quando faremos a próxima?" Na distopia abestalhada que assola o Brasil de Bolsonaro - do genocídio, das milícias, do terrorismo de Estado, da ode à burrice e à desinformação -, Comissões da Verdade continuam tão necessárias em 2021 quanto eram em 2011. E pelos mesmos motivos.

Porque falta acertar as contas com um passado de autoritarismo e perseguição. Porque a interpretação dada pelo STF à Lei da Anistia, redimindo assassinos e torturadores, é uma vergonha sem tamanho. Porque florestas e populações indígenas voltaram a ser dizimadas em ritmo escandaloso. Porque Amarildo continua desaparecido. Porque pretos e pobres continuam a carne mais barata do mercado. Porque uma suposta ameaça comunista continua no topo do ranking das maiores lendas urbanas desde o advento da República. Porque seguimos contando nossos mortos: as vítimas do racismo e do negacionismo, os CPFs cancelados pela polícia militar (com o aval dos governantes), os mártires da luta por direitos humanos.

Em 18 de novembro de 2011, Dilma Rousseff ousou reunir militares e familiares de mortos e desaparecidos políticos num mesmo ambiente para assinar a Lei 12.528, que autorizava a criação da Comissão Nacional da Verdade, "com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (1946 a 1988), a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional." A assinatura dessa lei foi, em si, um ato de bravura. Desde que a proposta de criar uma comissão nesses moldes fora incluída na terceira edição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), em dezembro de 2009, o tema vinha sendo submetido a um inédito corredor polonês. Ao longo de 2010, foram dezenas as reuniões, centenas as notas e artigos de opinião publicados, ora para alegar que mexer nesse vespeiro era "revanchismo", e que seria preciso investigar também os crimes praticados "pelo outro lado" - ou seja, por aqueles que tombaram ao insurgir contra um Estado fascista e que já haviam cumprido penas bastante severas, para além da legalidade, submetidos a choques elétricos, espancamentos, estupros, tortura física e psicológica - ora para martelar a tecla de que não há reconciliação nacional, nem transição para a democracia, sem tirar os esqueletos do armário e atribuir-lhes nome e sobrenome.

Em novembro de 2011, os mesmos temas voltaram a pipocar nos jornais, aqui e ali, agora com um pouco mais de conhecimento de causa e menos afetação. As críticas já não se voltavam tanto à natureza da Comissão como antes, mas aos desafios que precisariam ser enfrentados, com certo tom de descrédito e, pasmem, às supostas fragilidades institucionais de um colegiado que não teria poder de convocação nem finalidade punitiva. "Diferentemente de experiências de outros países, a comissão não terá qualquer poder punitivo", lia-se na reportagem, apócrifa, publicada na Folha de S. Paulo no dia seguinte, editada em apenas uma coluna na página 16 do primeiro caderno, sob um título para lá de previsível: "Dilma diz que Comissão da Verdade não é 'revanchismo'". Na mesma edição, coluna de Fernando Rodrigues martelava outro senso comum: "A Comissão da Verdade começa agora o desafio já enfrentado por Chile e Argentina. Não será fácil."

Ainda no dia 19, a novidade mereceu maior destaque no jornal O Globo, com matéria de página inteira e chamada com foto na primeira página: "Na presença de ex-ativistas contra a ditadura e dos comandantes militares, ela destacou o fato histórico e garantiu que não haverá revanchismo", dizia a nota, referindo-se à presidente. Olha lá o revanchismo de novo. No Brasil de 2021, seremos nós os revanchistas? Os que buscam o corpo de Amarildo? Os que exigem apuração rigorosa do assassinato de Marielle Franco? Os que não concebem tamanho descaso com a vida e tanta demora para adquirir e aplicar vacinas? Os que tremem de indignação diante das declarações mentirosas de um presidente genocida, das aglomerações patrocinadas por ele, da campanha realizada por ele contra as máscaras e contra o distanciamento social?

Na prática, a Comissão Nacional da Verdade seria instalada somente seis meses depois do marco legal, em 16 de maio de 2012, com a posse dos sete integrantes escolhidos para inaugurarem os trabalhos. Em sua primeira etapa, o colegiado foi composto por Claudio Fonteles, Gilson Dipp, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Cardoso. Com a saída de Claudio Fonteles, em junho de 2013, Pedro Dallari passou a integrar a Comissão, tornando-se também seu coordenador e relator. Aquele ato de instalação, em maio de 2012, pode ser considerado um dos momentos mais simbólicos na defesa da democracia. Além da presidente Dilma Rousseff, compareceram à posse dos comissários todos os ex-presidentes vivos do Brasil, sem exceção. José Sarney, Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva haviam se sucedido na condução do país desde a volta dos civis ao poder, em 1985, e posaram juntos para uma foto pela primeira vez, em Brasília, unidos em torno do objetivo comum de encarar o passado. Sem medo.

Na data de hoje, dez anos após a assinatura da Lei 12.528, a efeméride será lembrada em um seminário promovido pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", que funcionou na Assembleia Legislativa entre 2012 e 2015, sob a presidência do ex-deputado estadual Adriano Diogo. O evento terá uma modesta audiência presencial no Centro Universitário Maria Antônia - sede da faculdade de Filosofia da USP até os primeiros anos do regime de exceção - e será transmitido ao vivo, das 14h às 18h, na página do CAAF-Unifesp no YouTube. Dilma Rousseff deve falar, por videoconferência, às 15h30.