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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Margarida Genevois, presidente de honra da Comissão Arns, completa 99 anos

Margarida Genevois, militante dos direitos humanos, aos 98 anos - Camilo Vannuchi
Margarida Genevois, militante dos direitos humanos, aos 98 anos Imagem: Camilo Vannuchi

Colunista do UOL

10/03/2022 00h10

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Ontem ela me ligou. Não pude atender. Quando retornei a ligação, no meio da tarde, ela estava deitada, descansando. Deixei recado. Por volta das seis, era ela na linha. "Você, que vai muito em livrarias, sabe de algum livro que eu possa ler para entender melhor esse conflito entre Rússia e Ucrânia?", ela quis saber. "Mas tem que ser um livro curto e simples. Não me venha com um calhamaço porque eu não consigo ler. Fico muito cansada."

Prometi dar uma olhada. Se você tiver alguma sugestão, manda para mim, por gentileza. Ou diretamente para ela. Neste 10 de março de 2022 em que publico esta coluna, Margarida Genevois completa 99 anos. E continua inquieta, indignada, querendo saber das coisas e, principalmente, contribuir com o que tiver a seu alcance para melhorar o mundo.

Na última vez que estive com ela, três semanas atrás, sua atenção estava voltada para Petrópolis e as mais de 100 vítimas fatais das enchentes e dos desabamentos registrados até aquele momento no município. Negligência de autoridades, cortes nos gastos com a defesa civil, mudanças climáticas... Agora, não bastassem o avanço da fome, o discurso de ódio, o youtuber que passa pano pra nazista e o deputado abusador desmascarado por um áudio no leste Europeu, existe uma guerra em andamento, com arsenal atômico envolvido, e Margarida quer se posicionar. Ainda hoje, estarei com ela para cumprimentá-la. Preciso arrumar um livro antes.

Margarida é uma inspiração. Já escrevi isso neste espaço. Duas vezes. A primeira, em 2019, quando ela recebeu o Prêmio Dom Paulo Evaristo Arns de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo. A segunda, quando publiquei sua biografia, "Margarida, coragem e esperança" (Ed. Alameda), em meados do ano passado. Tratando-se de Margarida, não sinto nenhum constrangimento em me repetir. Escreverei outras vezes sobre ela. Porque é preciso conhecê-la, é preciso seguir do mesmo lado da trincheira.

Hoje, oficialmente, inaugura-se o ano do centenário de Margarida, seu centésimo ano. Doce e lúcida, elegante como sempre, Margarida resiste. Resiste, como tantos, porque ferem sua existência. Resiste, como poucos, porque sabe que há muito a ser feito. "O que Deus ainda quer de mim?", ela pergunta, sobretudo quando bate o cansaço, quando o ar lhe falta. Horas depois, conectando-se para uma das reuniões periódicas da Comissão Arns, feitas há dois anos por videoconferência, parece ouvir alguma resposta. Talvez o que Deus queira dela seja exatamente isso: a resistência, a perseverança, o não se deixar abater. A capacidade indestrutível de mobilizar corações e mentes. E agir.

O currículo de Margarida é todo assim. Aos vinte e poucos anos, inventou cursos de puericultura na fazenda onde vivia porque não podia aceitar os números da mortalidade infantil que grassava nas famílias dos operários, ainda mais depois de descobrir hábitos como o de colocar excrementos de vaca no umbigo do bebê para cicatrizar mais depressa. Aos quarenta, quando as filhas ingressaram na faculdade, decidiu fazer também um curso superior, formando-se em Sociologia numa turma de moças com metade da sua idade. Aos cinquenta, passou a pontificar na Comissão Justiça e Paz de São Paulo, como voluntária, cinco dias por semana, acolhendo familiares de desaparecidos políticos e ajudando a denunciar torturas, prisões arbitrárias e outras violações. Aos sessenta, braço direito de Dom Paulo, ousou viajar o mundo todo representando o cardeal, apresentando os projetos daquela comissão e garimpando recursos em associações europeias a fim de os viabilizar. Esteve no Araguaia em busca de corpos ocultados de opositores torturados até a morte e também para tentar evitar um derramamento de sangue numa ocasião em que garimpeiros e familiares decidiram se manifestar (o único dia que ela sentiu medo, conforme narrado no nosso livro). Percorreu os pavilhões da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, dias depois da ação policial que culminou na execução de mais de uma centena de presos comuns a fim de falar com sobreviventes e colaborar nas denúncias, à imprensa e a organismos internacionais.

Para o jornalista Juca Kfouri, Margarida é "uma pessoa imprescindível, porque luta todos os dias, como diria Bertolt Brecht". Para o frade dominicano e escritor Frei Betto, uma "mulher exemplar", uma "militante quase centenária". Para a amiga e colega socióloga Maria Victoria de Mesquita Benevides, uma "mulher luminosa, solidária, feminista à frente de seu tempo". "Sua vida quase centenária pode ser contada por vários atos de coragem", afirma o jornalista Ricardo Kotscho, testemunha de vários deles. "Considero-me privilegiado por tê-la como amiga", comenta o advogado Marco Antônio Rodrigues Barbosa, ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. "Exemplo de vida, de honestidade, de ética, ela é uma inspiração permanente na defesa dos direitos humanos".

Que o ano de seu centenário nos inspire a conhecê-la ou reconhecê-la mais e mais. Ela e sua obra. Não como algo que ficou para trás, num passado remoto e distante, perdido num livro puído de história do Brasil, mas como obra permanente, feita dia após dia por uma mulher que resiste e milita e se informa e se engaja e discute e teima e produz. Com coragem e esperança. Com fome e sede de justiça.