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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Carolina de Jesus acertou: Brasil deve ser dirigido por quem já passou fome

33,1 milhões de brasileiros passam fome hoje no Brasil, uma situação que, segundo pesquisas recentes, tem menos a ver com a pandemia do que com o desmonte de políticas públicas - iStock
33,1 milhões de brasileiros passam fome hoje no Brasil, uma situação que, segundo pesquisas recentes, tem menos a ver com a pandemia do que com o desmonte de políticas públicas Imagem: iStock

Colunista do UOL

23/06/2022 04h00

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Foi em maio de 1958 que Carolina Maria de Jesus anotou em seu diário: "O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora." Mulher negra e favelada, catadora de ferro e papel, mãe solo de três crianças, Carolina cozinhava macarrão garimpado no lixo e procurava aparas de carne e ossos bovinos entre os descartes de um frigorífico para (tentar) aplacar a dor dos filhos. "Tem mais?", volta e meia um deles perguntava, após engolir um prato de sopa ou fubá. Nunca tinha.

As anotações de Carolina foram reunidas no livro "Quarto de despejo", organizado pelo jornalista Audálio Dantas e publicado em 1960. Depois vieram outros, transformando a catadora da favela do Canindé, em São Paulo, num fenômeno editorial.

Carolina sabia das coisas. Sabia das coisas quando escreveu, por exemplo, que, sob o aspecto da desigualdade social e do descaso com os mais pobres, "o mundo em vez de evoluir está retornando à primitividade". Ou quando anotou em seu diário que "as dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos".

"Eu quando estou com fome quero matar o Jânio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino", desabafou a escritora, também em 1958, referindo-se respectivamente ao governador paulista, ao prefeito de São Paulo e ao presidente da República. E o que dizer da frase "os gêneros alimentícios deve ser ao alcance de todos"?

Quem tem fome tem pressa

Até esta quinta-feira (23), acontece no Rio de Janeiro, com transmissão ao vivo pela internet, o Encontro Nacional Contra a Fome, organizado pela ONG Ação da Cidadania com apoio de entidades como o Instituto Fome Zero, a Oxfam Brasil e a OAB, entre outras.

O evento celebra os 30 anos do Movimento pela Ética na Política, que, liderado pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, desembocou, já em 1993, na campanha Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida. "Quem tem fome tem pressa", repetia o sociólogo, contribuindo para que o tema da segurança alimentar e nutricional ganhasse centralidade na agenda nacional e merecesse ampla repercussão na sociedade civil e nos meios de comunicação.

Ao mesmo tempo, o encontro também marca os 20 anos do Programa Fome Zero, anunciado logo após o segundo turno de 2002 e colocado em prática nos primeiros dias de 2003. Separadas no tempo por um intervalo de um decênio, ambas as iniciativas - a Ação da Cidadania e o Programa Fome Zero - têm uma origem muito parecida: as propostas de políticas públicas elaboradas ao longo dos anos 1990 pela equipe de colaboradores do Instituto Cidadania, como já relatei em coluna anterior, de 2021.

Hoje, o tema da fome deixou de ser oportuno para se tornar imperativo, necessário, compulsório. Nada mais forçoso, nada mais urgente.

15,5% da população passa fome

Os números são vergonhosos. Os dados mais chamativos já foram razoavelmente explorados em portais de notícias, jornais e telejornais desde a divulgação dos resultados do II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil, no último dia 8.

Produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), o relatório mostrou que 33,1 milhões de pessoas passam fome no Brasil, o equivalente a 15,5% da população. Considerando-se os níveis de insegurança alimentar leve (qualidade nutricional comprometida e incerteza quanto à obtenção de alimento em quantidade suficiente num futuro próximo) e moderado (alimentação em quantidade insuficiente, impossibilidade de fazer três refeições diárias), a chaga da restrição alimentar arrebata uma multidão de 125,2 milhões de brasileiros.

Pela primeira vez nos últimos vinte anos, desde a primeira pesquisa nacional por amostra de domicílio, divulgada em 2004, mais da metade do país afirma conviver com o problema.

Em consonância com o senso comum, a pesquisa revelou que a maior das violências é mais grave nas regiões Norte (54,6% da população com insegurança alimentar grave ou moderada) e Nordeste (43,6%). Em números absolutos, no entanto, é imperioso destacar que 11 milhões de famintos (insegurança alimentar grave) vivem na região Sudeste: uma em cada três pessoas que de fato passam fome no Brasil vivem na porção mais nobre, rica, moderna, estruturada e pujante do país.

Ainda segundo os pesquisadores - que visitaram 12.745 domicílios nos 26 Estados e no Distrito Federal entre novembro de 2021 e abril de 2022 -, 15% da população do Brasil (a amostra é representativa) não tomavam café da manhã, 10% não almoçavam e 20% não jantavam. Uma em cada três pessoas não fazia as três refeições diárias.

A situação é mais severa na zona rural. Os piores níveis de insegurança alimentar (25,6%) foram observados entre agricultores familiares e pequenos produtores rurais que tiveram redução na produção, sobretudo decorrentes da dificuldade de comercializar seus produtos.

Muito além da pandemia

O que explica o aumento de 73% no número de famintos em pouco mais de um ano, passando de 19,1 milhões no final de 2020 para 33,1 milhões em abril de 2022? A pandemia? O "fica em casa e a economia a gente vê depois?" Não. Segundo a equipe responsável por analisar os dados da pesquisa, o avanço da fome já estava acontecendo antes da pandemia em progressão geométrica, e aconteceria, em grande medida, mesmo se não houvesse Covid.

"O que há é um contínuo processo de empobrecimento e vulnerabilidade social de ampla parcela da população brasileira", afirma Sandra Maria Chaves dos Santos, vice-coordenadora do Inquérito e uma de suas relatoras. "Esse cenário é agravado na medida em que esses 33 milhões de brasileiros e brasileiras que convivem cotidianamente com a fome não contam mais com políticas de Estado efetivas."

Quando Sandra fala em políticas de Estado, ela não se refere necessariamente a programas de transferência de renda como o Bolsa Família ou seu sobrinho pobre, o Auxílio Brasil. Esses nem sequer são os mais importantes. Os grandes aliados no combate à fome e às demais formas de insegurança alimentar num passado recente foram o aumento do emprego formal e a política de valorização do salário-mínimo.

Simultaneamente, houve a decisão política de investir parte significativa do orçamento federal em programas e processos que solidificaram a capacidade de produção de alimentos, de geração de renda e de proteção social. Instrumentos como o Bolsa Família e o Benefício de Proteção Continuada foram muito importantes, mas não mais do que o fortalecimento da agricultura familiar por meio de diferentes políticas públicas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), o Luz para Todos ou a construção de cisternas.

A economista Tereza Campello, especialista em saúde pública e ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, participou de um dos painéis do Encontro Nacional Contra a Fome e citou o caso das cisternas. "Foram construídas 1 milhão de cisternas entre 2003 e 2014, algo absolutamente fundamental para levar água para a população do Semiárido, que não tinha segurança hídrica", ela diz. "Esse programa custou muito dinheiro, mas foi uma opção política dos governos investirem nisso.

Ainda segundo Tereza, só foi possível elaborar essa percepção e assumir as cisternas como prioridade graças à pressão feita pela sociedade civil por meio dos Conselhos Estaduais de Segurança Alimentar, os Conseas. "Hoje não tem cisterna nem Consea. Percebe a diferença?", diz.

A propósito, o inquérito divulgado no início do mês pela Rede PENSSAN mostrou que a insegurança hídrica continua sendo um flagelo importante da população mais vulnerável. As inseguranças, aliás, costumam andar de mãos dadas no Brasil: a família que não tem dinheiro para comprar comida também não consegue comprar o gás para cozinhar; a que não tem acesso à água potável não pode se alimentar adequadamente; a que não tem luz elétrica não consegue ter geladeira para conservar os alimentos.

Desmonte

O desmonte é visível. Famílias que vivem da agricultura familiar, por exemplo, sofrem por não conseguir escoar sua produção. Muitas delas sequer conseguem plantar e produzir sem a segurança dos contratos estabelecidos previamente no âmbito do PAA, um programa de compras governamentais implementado em 2003 com o objetivo de promover a agricultura familiar, principalmente a agroecológica.

Em vez de comprar biscoitos e macarrão empacotado de grandes indústrias a fim de abastecer a merenda escolar, por exemplo, priorizavam-se cooperativas locais de pequenos produtores, parte deles assentados, que assumiam uma parcela das compras de alimentos para fazer estoque, doar para beneficiários do Bolsa Família e outras comunidades vulneráveis e abastecer instituições públicas como colégios, hospitais e a rede de assistência social.

Até 2016, o programa beneficiou mais de 400 mil agricultores e foram adquiridas mais de 4 milhões de toneladas de alimentos. Acabou. Em 2021, Bolsonaro trocou o nome PAA por Alimenta Brasil e, em seguida, impôs uma redução drástica de orçamento. Conforme apontou reportagem do UOL, o PAA chegou a receber R$ 586 milhões do orçamento federal em 2012. Em 2021, foram R$ 58,9 milhões. Até maio deste ano, apenas R$ 89 mil.

O Brasil, já dizia Carolina Maria de Jesus, precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome.