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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Para que serve uma carta pela democracia?

O pátio das arcadas, na Faculdade de Direito da USP, foi escolhido para sediar o ato de leitura pública da carta pela democracia neste 11 de agosto   - BRUNO ROCHA/ESTADÃO CONTEÚDO
O pátio das arcadas, na Faculdade de Direito da USP, foi escolhido para sediar o ato de leitura pública da carta pela democracia neste 11 de agosto Imagem: BRUNO ROCHA/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

11/08/2022 04h00

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Há ocasiões que exigem tomadas de posição. Podem ser atitudes prosaicas, individuais, destituídas de pompa ou liturgia, como abandonar uma conferência em protesto pelas asneiras emanadas do púlpito ou deixar de ir a determinado estabelecimento comercial para não ser cúmplice de comportamentos inaceitáveis - como a truculência dos seguranças, o racismo das vendedoras, a homofobia das campanhas de marketing ou o fascismo hidrofóbico do proprietário.

Em geral, essas ações não são suficientes para mudar muita coisa. O sistema é foda, parceiro. Ainda assim, é bom que as reações existam. "Os lugares mais quentes do Inferno estão reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempos de crise", diz uma frase que o ex-presidente americano John F. Kennedy atribuiu a Dante Alighieri.

Mas quando o bicho pega, quando a porca torce o rabo, quando chega a hora de a onça beber água, nesses momentos o protesto individual não basta. É preciso ir além.

No limite

Hoje, parte muito significativa da sociedade civil brasileira está convencida de que vivemos esse momento limítrofe. O que era para ser, segundo o senso comum, um período de calmaria após a tempestade do impeachment, uma etapa de ajuste de rota após as turbulências da Lava Jato, uma oportunidade de elaboração de luto e superação após a experiência, inevitavelmente traumática, de assistir à prisão de um ex-presidente, converteu-se num turbilhão irrefreável de crise e destruição.

Fome, desmatamento, escalada de ódio, precarização, supressão de direitos, uma convergência perversa de inflação com recessão, autoritarismo, desinformação, aparelhamento da polícia federal e dos principais mecanismos de combate à corrupção, banalização da morte e uma inacreditável apologia de vilões incontestáveis como os agrotóxicos, o garimpo ilegal, o avanço dos pastos e da soja sobre a floresta, a difusão das armas de fogo e a intolerância religiosa.

Pode não estar claro para todos (ainda), mas começamos somente agora a colocar a cabeça para fora da terra, igual a avestruz ensimesmado tentando encarar o mundo de frente outra vez. Foram mais de três anos de inépcia e letargia: o gigante prostrado em cama king size, em posição fetal, enrolado em lençóis de algodão egípcio 2.500 fios. A ressaca da pandemia se somou à pasmaceira advinda da sensação claustrofóbica de se perceber caminhando num túnel escuro sem luz no fim.

Em momentos assim, o jeito é riscar o chão, com espada, bengala ou giz, de modo a explicitar o limite: daqui você não passa. A carta pela democracia lida nesta quinta-feira, 11 de agosto, às 11 horas da manhã na Faculdade de Direito da USP, é esse risco no chão.

A Carta

Elaborado por professores do Largo de São Francisco e intitulado "Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito", o texto-manifesto se aproxima de 1 milhão de assinaturas. Nela, são explicitados alguns dos limites que se busca resguardar. "O Brasil superou a ditadura militar", diz um trecho. "Temos os poderes da República, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, todos independentes, autônomos e com o compromisso de respeitar e zelar pela observância do pacto maior, a Constituição Federal", diz outro. "Tivemos várias alternâncias de poder com respeito aos resultados das urnas e transição republicana de governo", afirma um terceiro.

O que essas sentenças significam? Na essência, um compromisso com a cidadania e as regras do jogo, uma vacina contra um esgarçamento da democracia ainda maior, um atestado antecipado de que não estamos dispostos a embarcar numa nova ruptura autoritária ou em qualquer aventura que venha a ser patrocinada ou estimulada por qualquer dos candidatos, dos governantes ou das instituições.

Não é, em nenhum aspecto, uma carta que se refira explicitamente a este ou aquele, ao partido A ou ao partido B, e esta tem se mostrado sua maior qualidade. Revela, no conjunto, um real desconforto com a maneira com que a tradição democrática tem sido fustigada no Brasil, hoje sobretudo perante o fantasma da fraude e as ameaças de desacato à autoridade do voto popular. E uma salutar disposição em contribuirmos, como sociedade civil, desempenhando, nós mesmos, os papeis de freio e contrapeso.

Daí a repercussão que a carta mereceu nos últimos dias e a diversidade de personalidades que não apenas a assinaram, mas gravaram depoimentos em sua defesa e em sua promoção. O ato cresceu e diversos eventos de leitura pública da mesma carta foram agendados para a mesma data e local em diversos locais do país, muitas vezes em outras universidades e faculdades de Direito.

No site criado pelo grupo de professores para reunir adesões e manifestações, havia até a noite de quarta-feira (10) mais de sessenta vídeos nos quais juristas, intelectuais e artistas convidavam o conjunto da população a assinar e a comparecer ao ato de leitura pública da carta no dia 11. Luciano Huck e Bruna Lombardi, Chico Buarque e Zélia Duncan, Céu e Zeca Baleiro, Chico César e Marisa Orth, Juca Kfouri e Fábio Assunção, Kakay e Lênio Streck, Patrícia Melo e Paulo Betti, Malu Mader e Chico Pinheiro, Celso Lafer e Arnaldo Antunes, uma boa constelação.

Também na véspera do ato foi divulgado um vídeo em que alguns desses e outros artistas leem a carta em jogral. Chico, Caetano, Bethânia, Gal, Milton, Anitta, Fernanda Montenegro, Antônio Fagundes, Seu Jorge, Cristiane Torloni, Antônio Pitanga, Camila Pitanga, Marisa Monte, Nando Reis, Luiza Sonsa, Bruno Mazzeo, Dira Paes, Daniela Mercury, Juliette, Linn da Quebrada, Duda Beat, Wagner Moura, Manu Gavassi, Marcos Palmeira, Lázaro Ramos...

Todo poder emana do povo

Iniciativas semelhantes foram tomadas em momentos similares da História, umas com mais adesão e outras com menos. A campanha da legalidade, em 1961, para garantir a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros, foi um desses momentos. A campanha pelas Diretas, entre 1983 e 1984, foi outro. Tanto em uma quanto em outra, o que se disputava era a garantir de um direito, e não a preferência por um partido, um nome, uma ideologia. Parte das vezes, buscou-se sintetizar as demandas numa carta, numa espécie de declaração de princípios.

A carta de agora, por exemplo, foi inspirada na Carta aos Brasileiros, lida em agosto de 1977 na mesma Faculdade de Direito pelo professor Goffredo da Silva Telles Junior. Foi ela, a propósito, a origem da frase lapidar que inaugura outra carta, a Constituição Federal de 1988: "todo poder emana do povo". Na ocasião, a intenção era confrontar a ditadura e clamar pela redemocratização, exigir a tal abertura política que, após três anos no poder, Geisel não atava nem desatava. Passados 45 anos, corremos o risco de caminhar no sentido inverso. A nova carta às brasileiras e aos brasileiros tem a justa presunção de evitar que a democracia desande, solape, se exploda. Para que isso não aconteça, tem hora que é preciso riscar o chão. Se vai surtir efeito ou não, o tempo dirá.

Confira a íntegra da carta:

Em agosto de 1977, em meio às comemorações do sesquicentenário de fundação dos Cursos Jurídicos no País, o professor Goffredo da Silva Telles Junior, mestre de todos nós, no território livre do Largo de São Francisco, leu a Carta aos Brasileiros, na qual denunciava a ilegitimidade do então governo militar e o estado de exceção em que vivíamos. Conclamava também o restabelecimento do estado de direito e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.

A semente plantada rendeu frutos. O Brasil superou a ditadura militar. A Assembleia Nacional Constituinte resgatou a legitimidade de nossas instituições, restabelecendo o estado democrático de direito com a prevalência do respeito aos direitos fundamentais.

Temos os poderes da República, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, todos independentes, autônomos e com o compromisso de respeitar e zelar pela observância do pacto maior, a Constituição Federal.

Sob o manto da Constituição Federal de 1988, prestes a completar seu 34º aniversário, passamos por eleições livres e periódicas, nas quais o debate político sobre os projetos para país sempre foi democrático, cabendo a decisão final à soberania popular.

A lição de Goffredo está estampada em nossa Constituição "Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".

Nossas eleições com o processo eletrônico de apuração têm servido de exemplo no mundo. Tivemos várias alternâncias de poder com respeito aos resultados das urnas e transição republicana de governo. As urnas eletrônicas revelaram-se seguras e confiáveis, assim como a Justiça Eleitoral.

Nossa democracia cresceu e amadureceu, mas muito ainda há de ser feito. Vivemos em país de profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública. Temos muito a caminhar no desenvolvimento das nossas potencialidades econômicas de forma sustentável. O Estado apresenta-se ineficiente diante dos seus inúmeros desafios. Pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de raça, gênero e orientação sexual ainda estão longe de ser atendidos com a devida plenitude.

Nos próximos dias, em meio a estes desafios, teremos o início da campanha eleitoral para a renovação dos mandatos dos legislativos e executivos estaduais e federais. Neste momento, deveríamos ter o ápice da democracia com a disputa entre os vários projetos políticos visando convencer o eleitorado da melhor proposta para os rumos do país nos próximos anos.

Ao invés de uma festa cívica, estamos passando por momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições.

Ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o estado democrático de direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira. São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional.

Assistimos recentemente a desvarios autoritários que puseram em risco a secular democracia norte-americana. Lá as tentativas de desestabilizar a democracia e a confiança do povo na lisura das eleições não tiveram êxito, aqui também não terão.

Nossa consciência cívica é muito maior do que imaginam os adversários da democracia. Sabemos deixar ao lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática.

Imbuídos do espírito cívico que lastreou a Carta aos Brasileiros de 1977 e reunidos no mesmo território livre do Largo de São Francisco, independentemente da preferência eleitoral ou partidária de cada um, clamamos as brasileiras e brasileiros a ficarem alertas na defesa da democracia e do respeito ao resultado das eleições.

No Brasil atual não há mais espaço para retrocessos autoritários. Ditadura e tortura pertencem ao passado. A solução dos imensos desafios da sociedade brasileira passa necessariamente pelo respeito ao resultado das eleições.

Em vigília cívica contra as tentativas de rupturas, bradamos de forma uníssona:

Estado Democrático de Direito Sempre!!!!