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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Comissões da Verdade têm pouca utilidade se as recomendações ficam no papel

18.03.2022 - O presidente, Jair Bolsonaro (PL), usa cocar após cerimônia em que recebeu a Medalha do Mérito Indígena, no Ministério da Justiça, em Brasília. - REUTERS / Adriano Machado
18.03.2022 - O presidente, Jair Bolsonaro (PL), usa cocar após cerimônia em que recebeu a Medalha do Mérito Indígena, no Ministério da Justiça, em Brasília. Imagem: REUTERS / Adriano Machado

Colunista do UOL

26/01/2023 04h00

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As imagens do holocausto ianomâmi renovaram certa convicção de que os muitos crimes contra a humanidade aparentemente praticados pelo Estado nos últimos quatro anos justificariam a instalação de uma nova Comissão da Verdade no Brasil.

Uma Comissão para investigar as violações de direitos cometidas no período recente, entenda-se, nesta suposta democracia em que governantes decidem que pode faltar oxigênio nos hospitais, que a compra de vacinas não é uma ação prioritária, que garimpeiros devem ter livre acesso a áreas limítrofes a terras indígenas, que meninas de 14 anos podem ser assediadas, que garotas de 11 podem ser obrigadas a parir.

Leio perplexo que partiu da ex-ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, a recomendação para que o ex-presidente Jair Bolsonaro vetasse trechos de uma lei que garantiria cuidados especiais às populações indígenas durante a pandemia, como fornecimento de água potável e a instalação emergencial de leitos hospitalares nas aldeias. Leonardo Sakamoto já apresentou, aqui mesmo no UOL, o histórico de decretos (e vetos) assinados por Bolsonaro com alto potencial de genocídio indígena. No ano passado, o Tribunal Permanente dos Povos condenou o governo Bolsonaro por crimes contra a humanidade - uma condenação simbólica, internacional, sem penalidades efetivas contra o ex-presidente e sua patota. O que fazer diante dessas informações?

Quando milhares de pessoas decidiram gritar "Sem anistia!" na Praça dos Três Poderes, no dia 1º de janeiro, por ocasião do discurso do presidente Lula no parlatório, o que se ouviu foi a insatisfação de parte significativa da população brasileira com esse histórico de violações jamais punidas e raramente investigadas. Mais uma vez, cometeremos a covardia de virar a página sem ler o conteúdo e aprender com ele? Esses genocidas, que abundam na história do Brasil - de batina, de gravata ou de avental; de coturno, anel de doutor ou faixa presidencial -, receberão mais uma vez um tapinha nas costas e uma mensagem motivadora do tipo "vamos colocar um ponto final em tudo isso", "o revanchismo não leva a lugar nenhum" ou "o que importa é pacificar a nação"? Quem será o primeiro a sugerir que se investiguem "os dois lados"?

Erramos muito, erramos rude, ao subestimar a necessidade de reparar as violências cometidas, ao imaginar que uma nação pode ser pacificada emparedando a memória, sepultando a verdade, passando por cima da Justiça. E não me refiro apenas aos crimes da ditadura militar. E os desaparecidos da democracia? E os brasileiros pretos, pobres e periféricos que continuam levando tapa na cara, saco plástico na cabeça, mão nos seios e na vagina, que continuam tendo suas casas invadidas sem mandado de busca, que são mortos com tiros nas costas e na nuca, à queima roupa, embora os boletins de ocorrência invariavelmente acusem uso de arma de fogo e resistência à voz de prisão? E, vergonha maior, como ficam as reparações relacionadas ao secular extermínio indígena e à escravização de negras e negros naqueles que foram os dois genocídios mais absurdos e inaceitáveis praticados na gloriosa nação auriverde?

É preciso e é possível condenar quem tortura, quem extermina, quem oculta e quem colabora para a morte deliberada, a morte intencional, a morte como política de Estado, por ódio, negligência ou perversão. Sem condenação, autocratas e militares de hoje são estimulados a agir da mesma forma. A certeza da impunidade é o combustível que os move. Vale a lei do mais forte. Aos vulneráveis, aos negros, aos indígenas, aos idealistas que não se calam, aos pacifistas, aos missionários da justiça e da liberdade, esses tarados seguirão oferecendo o escárnio, a arrogância, a truculência e a insubmissão.

O país deveria aproveitar a janela de oportunidade aberta após a tentativa de golpe do dia 8, os indícios de cumplicidade de setores das Forças Armadas com as tentativas de promover o caos e a inaceitável colaboração do governo anterior com o Holocausto indígena para dar início a um processo efetivo de condenações e de depuração de certas instituições. A pior coisa que pode acontecer, agora, é passar por cima de tudo isso como sempre fizemos. "Sem anistia", lembra? Não podemos nos esquecer.

Uma boa inspiração neste sentido é Argentina, 1985, que acaba de ser confirmado na lista dos cinco finalistas ao Oscar de filme em língua estrangeira. O longa estrelado por Ricardo Darín narra o início dos processos judiciais que condenaram torturadores, assassinos e violadores de direitos com vasto rol de serviços prestados à ditadura argentina.

Coincidentemente, no último dia 18, a Justiça condenou na esfera civil três delegados de polícia do tempo da ditadura por usarem o poder de forma ilegal, cometendo tortura, desaparecimento e homicídio (tudo comprovado, segundo a juíza que assina a sentença). Aposentados e com um soldo mensal de R$ 23 mil a R$ 27 mil, segundo reportagem do Carlos Madeiro para o UOL, os delegados Aparecido Calandra, David Araújo e Dirceu Gravina pagarão uma indenização de R$ 1 milhão cada por danos morais coletivos. Cabe recurso.

No Brasil, meio caminho já foi andado. Já tivemos uma Comissão Nacional da Verdade e diversas comissões estaduais e municipais que investigaram as violências de Estado praticadas de 1964 a 1988. Estão apuradas, documentadas e registradas em dezenas de relatórios.

Essas comissões resultaram também em dezenas de recomendações de boas práticas de gestão pública e em estratégias capazes de coibir, no curto e no longo prazo, as violações de direitos ainda praticadas. Elas são muitas. Quem mandou matar Marielle? Onde está o Amarildo? Por que o senhor atirou em mim?

Enquanto se investigam as violações de direitos praticadas pelo Estado nos períodos mais recentes, por que não criar uma Comissão de Acompanhamento para garantir que as recomendações sejam colocadas em prática? Ou uma Secretaria Executiva de Justiça de Transição? Quem sabe um Ministério das Reparações? Ou vamos continuar escolhendo sempre o atraso, a injustiça e a vergonha?