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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

É quase tudo verdade no país do 171; será?

Filme "171", de Rodrigo Siqueira, estreia no festival É Tudo Verdade neste mês - Divulgação
Filme '171', de Rodrigo Siqueira, estreia no festival É Tudo Verdade neste mês Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

13/04/2023 04h00

Gosto de ler epígrafes, inscrições que alguns autores adotam no início de seus livros, normalmente emprestadas de outra obra, como citação. Por vezes, demoro-me longamente nelas. Quando bem escolhidas, epígrafes nunca são prosaicas ou inofensivas. De alguma forma, fustigam o leitor e a leitora, ou os recepcionam, como atenciosas anfitriãs, preparando-os para o relato que vem pela frente.

Algumas epígrafes suscitam, por si só, boas histórias. Uma delas está no livro "Inferno", de Dan Brown: "Os lugares mais quentes do inferno são reservados àqueles que se mantiveram neutros em tempos de crise moral".

O autor não revela a autoria da frase. Muitos afirmam que se trata de uma citação de Dante Alighieri, um copy & paste de "A Divina Comédia", embora estudiosos do autor italiano jurem de pés juntos que essa frase não consta da trilogia. Segundo o pensador estadunidense São Google, a frase teria sido dita pelo ex-presidente John F. Kennedy, que a atribuiu a Dante. Será verdade?

"A verdade, a áspera verdade", cita Stendhal, recorrendo a Danton, nas primeiras páginas de "O vermelho e o negro". "Enquanto não alcançares a verdade, não poderás corrigi-la", diz José Saramago na antessala de "História do Cerco de Lisboa". "Porém, se a não corrigires, não a alcançarás. Entretanto, não te resignes."

Das mais recentes, minha preferida é a epígrafe que inaugura o livro "K.", de B. Kucinski: "Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu."

Andei saracoteando por essas lembranças epigrafais — e fui conferir os livros na estante para não cometer nenhuma injustiça ou desinformação — depois de assistir ao filme "171", de Rodrigo Siqueira, que faz sua estreia nos cinemas no próximo fim de semana, incluído na programação do festival de documentários É Tudo Verdade.

O longa de Rodrigo, aliás, também ganhou uma epígrafe, cunhada há quase 2.000 anos por um evangelista: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e Verbo era Deus (João 1:1)". Fingi naturalidade e segui em frente. Não sem antes sorrir: Com esse título, como pode estrear num festival chamado É Tudo Verdade? Cadê o pessoal da CPI das Fake News? Cadê o Alexandre de Moraes?

Para quem não sabe, ou finge que não sabe, 171 é o número do artigo do Código Penal que tipifica o crime de estelionato. A redação é bonita: "Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento". Golpe, trapaça, impostura, caô. Na trama, vemos o diretor e sua equipe adentrarem um centro de detenção. Um ator narra sua história, desde os palcos até os primeiros crimes. Dali a alguns instantes, ele surge num set, gravando uma cena, dirigido por cineasta. Já não sabemos o que é documental e o que é encenação. O ator finge que é um estelionatário ou o estelionatário finge que é um ator? Quem determina onde termina um e começa o outro? Não seriam os atores e dramaturgos meros estelionatários aos quais se pagam ingresso e cachê?

Rodrigo Siqueira gosta de testar os limites entre realidade e ficção. Em "Terra Deu, Terra Come", contam-se histórias, causos, lendas, reminiscências, manias e imposições de um morto que nunca se vê. Espectadores, construímos o personagem a partir dos relatos. Aprendemos que João Batista morreu aos 120 anos, que gostava de pinga, que enterrou pelo menos um diamante no entorno da casa com medo de que lhe fosse tomado. Tudo verdade?

Em outro filme, "Orestes", Rodrigo propõe um exercício de psicodrama e um júri simulado para tocar mais fundo e duas feridas reais e concretas: a violência de Estado na forma de torturas e desaparecimentos nos anos de chumbo e a letalidade de uma polícia que, de forma estrutural e sistemática, investe deliberadamente contra jovens negros e pobres da periferia. Quem é policial, quem é mãe de um estudante executado pela PM e quem é mãe de um estudante assassinado por um jovem da periferia? O que significa clamar por justiça? Justiça para quem, e para quê?

Em junho de 2006, o cineasta Eduardo Coutinho gravou uma série de entrevistas com 23 mulheres comuns num teatro do Rio de Janeiro. Nos takes, contavam suas vidas, seus relacionamentos, seus projetos, seu cotidiano. Em setembro, atrizes foram ao mesmo palco e gravaram também entrevistas, agora interpretando os papéis daquelas mulheres. Na montagem final de "Jogo de Cena", a confusão foi propositadamente instalada. Quem é atriz e quem é gente do povo narrando espontaneamente suas próprias memórias naquele grupo? Tudo verdade?

Em "171", são seis os atores-presidiários, seis personagens à procura de um alvará de soltura. Quem foram e o que fizeram antes da prisão? O padre luta sumô? A agricultora conserta instrumentos?

Nas imagens de João Atala, um dos grandes fotógrafos de sua geração, todas em preto e branco e alinhavadas na inspirada montagem de Celso Vilalba, assistimos a um jogo de cena semelhante ao proposto por Coutinho há quase duas décadas. É para Eduardo Coutinho que Rodrigo dedica o novo filme.

Nos últimos dias, muito se discutiu sobre estelionato eleitoral. Jornalistas de grandes jornais, com a habitual vocação para fazer intriga em larga escala, puxaram o cordão dos moralistas indignados. O arcabouço fiscal, se azeitado conforme as orientações inscritas num amplo leque de comentários e editoriais — com todos os tetos e apertos exigidos pela turma da Faria Lima —, poderá justificar a pecha de estelionato eleitoral, afirmaram, coisa que ninguém havia atribuído ao novo governo antes que esses mesmos jornais o fizessem.

Ao contrário, o que vinha se comentando às vésperas dos cem dias de Lula na Presidência era essencialmente o oposto: se não retirasse os Correios e a EBC da lista de empresas privatizáveis, Lula cometeria estelionato eleitoral, apontaram alguns debatedores e colunistas. Até a presidente do PT, Gleisi Hoffman, tentou enquadrar o ministro de Minas e Energia, afirmando que ele deve indicar conselheiros para a Petrobras que sigam as orientações do governo e estejam de acordo com o que foi prometido na campanha. "Estelionato eleitoral não pode", disse ela.

A carapuça do estelionato talvez vestisse feito luva em setores da imprensa que se arvoram em prometer um jornalismo pretensamente isento, pretensamente imparcial. Assim como certos policiais e operadores do direito que não hesitam em dar seus pulos para ganhar um trocado na primeira oportunidade de suborno reincorporando, minutos depois, a pose de agente incorruptível, defensor da moral, bastião da justiça e homem de bem.

Já reparou na capacidade hercúlea que líderes religiosos têm de cometer pecados graves e crimes hediondos? E já notou como os grandes escândalos envolvendo tráfico de drogas e pornografia costumam indicar o protagonismo ou a cumplicidade daqueles que frequentemente pregam contra a balbúrdia e os maus costumes? E quando um porta-voz do Twitter diz que a plataforma se preocupa com a democracia, com o Estado Democrático de Direito? O que tem de 171 à solta por aí...

"171" terá quatro exibições no É Tudo Verdade. Primeiro no Rio de Janeiro, nesta sexta-feira (14), às 20h, no NET Botafogo, e neste sábado (15), às 18h, no NET Rio. Em seguida, chega a São Paulo para outras duas sessões. No domingo (16), às 19h, na Cinemateca Brasileira, e na terça-feira (18), às 20h30, no Cine Vitrine. A entrada é gratuita e os ingressos serão distribuídos uma hora antes. Será?

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